Direito autoral sobre partes do corpo

Se a paranoia sobre direitos autorais tivesse começado na antigüidade, não é improvável que pessoas tivessem que pagar por ter sangue circulando nas veias ou por consumir oxigênio do ar.


Se há algo de mais deplorável na ciência de hoje, este algo é de longe as patentes genéticas. Essas patentes sim que deveriam ser o foco das atenções de debates sobre bioética. Tomemos o caso do gene BRCA-1. Se uma mulher possui uma mutação neste gene, então ela tem 80-85% de chance de desenvolver câncer de mama, e mutações deste gene são responsáveis por cerca de %5 dos casos deste câncer — junto com o BRCA-2, 10%. Porém, é inviável fazer uma avaliação da presença de mutação deste gene quando uma criança nasce junto com o teste do pezinho, porque se você tem o gene, você tem que pagar o royalty para a Myriad Genetics Inc., Universidade de Utah e National Institute of Heatlh (NIH). Segundo James Watson em DNA: O Segredo da Vida, esta patente pode chegar até US$ 1 mil por identificação (isso era em 2002). Como resultado, um exame de diagnóstico de BRCA-1 é, naturalmente, uma fortuna, e só o royalty é várias vezes o custo do exame.

Vemos ai um enorme progresso na medicina e no combate ao câncer minado pela avareza e soberba infinitas humanas. Na minha opinião, as patentes deveriam ser todas negadas e anuladas. Tenho certeza que daqui alguns anos, o bom-senso e melhor conhecimento do significado de o que é um gene vai chegar na cabeça dos juristas, e essas sandices vão acabar.

Não apenas potenciais pacientes saem perdendo. Os laboratórios de pesquisa também: se você decide realizar uma pesquisa que envolve identificar o BCRA-1/2 em um paciente, tem que pagar por cada identificação. Nesse caso, se não me falha a memória, o preço é mais camarada, algo como US$ 100. Não obstante, a dificuldade de conseguir dinheiro para pesquisa científica é notória e esse tipo de patente apenas dificulta ainda mais o desenvolvimento da ciência.

Na semana passada, mais um sujeito entrou para o hall da fama dos seres humanos mesquinhos e deploráveis que pedem patente por partes humanas: James Thomson. Ele quer patentear células-tronco embrionárias. É isso mesmo. Ele quer que toda vez que alguém retire uma célula-tronco de um embrião usando a técnica por ele inventada, que essa pessoa tenha que pagar o devido royalty. Já não bastou o entrave no congresso americano, as tensões do julgamento do STF no Brasil e situações similares na Europa, Koréia e mundo afora, e agora novamente as pesquisas com célula-tronco embrionárias são ameaçadas por um cientista. Se ele conseguir a patente, pode não ser o desastre completo para os Estados Unidos e a Europa. Afinal, o que é ter que pagar mais uns US$300 por cada célula-tronco a mais, não é? Só vai encarecer em mais alguns milhões. Para o orçamento de bilhões de dólares do NIH, o Dr. James deve estar pensando "É só mais um preço que a sociedade tem que pagar por eu ser assim tão inteligente". Mas se a patente chegar até ao Brasil e aos demais países emergentes, cada centavo pago de royalty vai fazer a diferença. Se o Dr. James quiser, ele pode inviabilizar a pesquisa com células-tronco embrionárias no mundo inteiro, com exceção das grandes potências. Para quem já tomou o primeiro passo de solicitar uma patente sobre um bem natural humano, presente em todos os embriões já criados e que serão criados, eu não ficaria surpreso se de fato ele estipulasse uma taxa alta demais. Qualquer taxa já é um absurdo! Estamos falando de células, pelo amor do neutrino!

Ainda bem que nossos ancestrais não patentearam a produção de fogo.

Entropia e desordem: mal entendidos em Física vol. 2

Nota: Em alguns aspectos, outro post apresenta o que está aqui de forma melhor e mais detalhada, porém, mais matemática.

Edição: 22/08/08, em versão anterior, eu atribui a Carnot o conceito de entropia e a demonstração de que Q/T é maior ou igual a zero. Parece que, na verdade, isto foi devido a Clausius.

Um dos conceitos mais interessantes da Física é o da entropia. A entropia surgiu pela primeira vez quando se começou a debater a eficiência das máquinas, quando Clausius demonstrou que em um processo reversível vale a desigualdade

 

para variação de calor  em um processo a temperatura T. Clausius chamou o lado esquerdo da desigualdade de entropia.

Hoje em dia entende-se que o que é fundamental e universal para todos os sistemas físicos macroscópicos é a existência de uma função S da energia U, volume V, número de partículas que constitutem o material N, e possivelmente outras variáveis como campos elétricos e magnéticos: S = S(U,V,N, ...). Postula-se a existência dessa função, chamada de entropia, assim como suas propriedades, o que define a segunda lei da Termodinâmica. Isso deixa bem claro quais são as regras do jogo, as leis fundamentais da Natureza, assim como se faz com a formulação da lei de Newton (a existência de uma função vetorial F, da posição, velocidade e do tempo, que satisfaz F = ma, e que se chama de força).

Mas toda matéria é feita de átomos. E cada átomo tem propriedades como a sua posição, velocidade relativa a um certo referencial, massa, energia, etc. Não entra entropia na lista. Se toda a matéria é feita de átomos, de onde vem a existência dessa função S?

A interpretação usual da entropia é chama-la de uma medida de desordem. Quase todos os físicos interpretam assim. Não só vaga e subjetiva, essa interpretação é incorreta. Vejamos o caso de um sistema ferromagnético (como o ferro). Abaixo de uma certa temperatura
, o material cria um campo magnético externo. Isso é porque cada átomo contém um certo dipolo magnético , que é uma espécie de "carga" magnética. A energia de dois dipolos é dada por , então a energia mínima é alcançada quando os dipolos apontam na mesma direção. Quando a energia de agitação térmica é bem maior que a de ligação dos dipolos, estes são nocauteados em direções aleatórias, e ai a soma sobre todos os átomos dá um campo magnético zero. Se baixarmos suficientemente a temperatura, o acoplamento magnético vence a agitação térmica e o material adquire um campo magnético externo. Nesse estado, todos os dipolos magnéticos estão alinhados: a ordenação do sistema é máxima. Se imaginarmos desalinhar os momentos magnéticos a temperaturas , o sistema vai sair de um estado desordenado para um ordenado, e vai aumentar a entropia, pela segunda lei da Termodinâmica. Dai aumentamos a entropia do sistema e a ordem também.

A entropia foi vinculada as variáveis microscópicas da Natureza por Ludwig Boltzmann. Ele mostrou que o logarítmo do volume do espaço composto pelas variáveis microscópicas (como a posição e momento) é a entropia:


onde W é o volume do espaço das variáveis microscópicas, e k, a constante de Boltzmann, é uma constante que fixa as unidades. Com a equação de Boltzmann, agora podemos entender melhor o que significa a entropia.

A interpretação correta da entropia tem a ver com o conceito de informação. O conceito foi matematizado por Claude Shannon, que demonstrou que há uma medida (no sentido matemático da palavra, como a idéia de área e volume) que tem as propriedades que associaríamos intuitivamente com informação, e esta medida é exatamente a equação de Boltzmann!  Na interpretação de Shannon, a entropia é uma medida da falta de informação sobre o sistema: escolhemos as variáveis U, V, N, e omitimos, por exemplo, as velocidades individuais das partículas; a medida (volume) da informação perida é a entropia S. Em dois artigos de 1957, o físico Edwin T. Jaynes, na época na Universidade de Stanford,  mostrou o seguinte: a medida de informação do sistema, chamemo-la de S, é exatamente a fórmula de Boltzmann quando a falta de informação (no sentido de Shannon) é máxima. Dessa forma, podemos entender a entropia como sendo a medida de informação associada a um sistema de várias partículas, e o equilíbrio termodinâmico (a maximização da entropia) é alcançado quando há a menor quantidade de informação disponível sobre o sistema.

Então, o que é entropia? Um sistema físico composto por átomos seria em totalidade descrito pela posição, velocidade, momento magnético, etc., de cada átomo. Para um número muito grande de átomos, podemos ignorar essas variáveis e nos concentrar no número mínimo de variáveis coletivas do sistema como um todo: a energia total (de todas as partículas), o volume (a região do espaço ocupada por qualquer uma partícula), o número total de partículas, o campo magnético total, etc. Se mudarmos uma das variáveis, então podemos nos perguntar para onde vai o sistema? Isto é, qual o valor novo das novas variáveis? Por exemplo, se temos um gás dentro de um recipiente de volume V que não troca calor com meio externo, e então duplicarmos o volume, qual a nova temperatura? A resposta é a seguinte: o novo estado do sistema será tal que a quantidade de informação é a mínima possível (ou seja, a entropia é máxima, dados os vínculos do sistema).

Para finalizar, o conceito de informação de Shannon encontrou aplicação em outras áreas da Física também: sistemas dinâmicos, caos e complexidade, e também em computação quântica. Mas cada assunto desse é mais que um post...

Para saber mais:
  1. A Mathematical Theory of Communication, C. Shannon, online.
  2. E. T. Jaynes, Phys. Rev. 106, 620; Phys. Rev. 108, 171.
  3. H. Callen, Thermodynamics
  4. S. A. Salinas, Introdução a Física Estatística, Edusp.

Entropia máxima

A terceira lei da termodinâmica possui um limite mínimo para a entropia que um sistema pode ter (que é zero). Hoje encontrei este artigo,



em que há uma elegante e muito simples demonstração de um limite superior para a entropia de um sistema,


onde g ~ O(1) [um número da ordem de 1].

Deus é imaginário

Alguém que prefere manter o anonimato sustenta dois excelentes sítios na Internet,

Estes sites estão nos links sugeridos do blog desde o início, mas talvez você ainda não os tenha prestado uma visita. Assim como o livro do Carl Sagan que resenhei aqui, estes sítios tem o objetivo de tentar motivar o pensamento crítico a respeito da religião por parte dos religiosos. O site é especialmente focado para os cristãos. Entre os grandes feitos do autor, estão vários vídeos no YouTube sobre o assunto, que já passaram a marca de 1,5 milhão de visualizações.

A estratégia de God is Imaginary é perfeita. Como o intuito não é provocar ou ofender, o autor começa com apaziguadores: 
Irei assumir que você é um cristão educado. Você tem um diploma universitário e foi treinado para pensar crítica e racionalmente sobre o mundo em que vivemos. (...) Você alguma vez já pensou em usar a sua erudição para refletir sobre sua fé? Sua vida e sua carreira demandam que você pense e aja racionalmente. Vamos aplicar suas habilidades de pensamento crítico enquanto discutimos algumas questões simples sobre sua religião.
Partindo disso, o website lista 50 itens de reflexão a respeito da religião. Algumas questões dizem respeito a promessa não cumprida, ou inconsistente, da religião:
  1. Por que Deus não cura os amputados? Como um cristão, você acredita no poder da reza e acredita que Deus está por ai curando doenças. Mas todos nós reconhecemos que isso não se aplica aos amputados: nós não vemos no nosso dia-a-dia pernas ou braços serem regenerados espontaneamente. Não importa o quanto se reze, amputados não recebem nenhum milagre de Deus. Se você é uma pessoa inteligente, tem que admitir que esta é uma pergunta interessante. Por um lado, você acredita que Deus responde preces e realiza milagres, mas por outro, sabe que isso não se aplica a membros amputados. Como resolver essa discrepância?
  2. Por que há tantas pessoas passando fome no mundo? Por que Deus estaria preocupado com você receber um aumento [permitam-me expandir aqui: por que Deus estaria preocupado com o seu sucesso profissional em geral], respondendo suas preces e fé na existência Dele, mas ignoraria a fome e a miséria de milhares de crianças na África subsaariana? Como um Deus que é amor e se preocupa com o bem estar e destino dos humanos pode fazer isso?
Algumas outras questões dizem respeito a falseabilidade da religião. Antes de mais nada, é importante perceber o detalhe sutil que a religião tem na mente das pessoas, como foi apontado por Sam Harris várias vezes. As pessoas dão um status especial a religião pelo puro e simples fato de ser considerada um fato social chamado religião. Observe, por exemplo, esse argumento comum com intuito de justificar a fé: "Não podemos provar que Deus não existe". Ora, também não podemos provar que gnomos não existem. E há livros antigos da Irlanda sobre gnomos, contos de escritores, relatos de crianças, aparições em filmes, desenhos animados e outras mídias, produtos comerciais. No entanto, seria tolice argumentar que só porque não se pode provar que gnomos não existem que é razoável acreditar na existência deles. Só seria razoável acreditar em gnomos se houvesse evidências copiosas. No entanto, sabemos que gnomos não passam de histórias inventadas na Irlanda muito tempo atrás. Todas as pessoas no Brasil são ateus com relação a gnomos. O mesmo argumento vale para o Deus cristão, todavia, porque no Brasil a crença em gnomos não é considerada socialmente uma religião, as pessoas não utilizam desta mesma racionalidade. Na cabeça do cidadão comum, a religião tem um status especial, um escudo contra críticas que são válidas para qualquer outro sistema de conhecimento. Outros exemplos concretos desta distinção você pode ver na tentativa inconsistente de separar a religião social dos cultos e mitologias (A Cientologia, por exemplo, é um culto? Quase todas as críticas, principalmente as que dizem respeito ao funcionamento econômico da Igreja da Cientologia, se aplicam diretamente aos Evangélicos. Mas ninguém diz que os Evangélicos são um culto, não é?). Se por um instante lenvatarmos esse escudo, as 50 questões de God is Imaginary vão automaticamente colocar o cristianismo no mesmo patamar de plausibilidade que a Fada dos Dentes.

O autor do site continua argumentando que, se você for uma pessoa inteligente, vai buscar uma forma de racionalização para as perguntas inventando alguma desculpa por parte de Deus. Por exemplo, você dirá que Deus permite que crianças morram de fome na África porque Ele tem algum plano misterioso para elas. E aqui mais uma vez, vemos como a religião tem seu status especial: se fosse um chefe de estado humano ou jurista que deliberadamente escolheu um grupo de pessoas para passar fome, mesmo tendo poder para resolver o problema, diríamos que esta atitude é imoral e repugnante.  Essa racionalização é tola. Simplesmente não faz sentido. Como um Deus que é amor é ao mesmo tempo conivente com tanto sofrimento dos humanos? 

Só há uma única resposta que faz sentido. Deus é imaginário. Se por um único momento você se permitir essa idéia, verá como todas as perguntas tem uma resposta clara e simples:
  1. Por que Deus não cura os amputados? Porque Deus é imaginário, e um produto da imaginação humana não responde aos anseios reais dos humanos. Não pode nos ouvir, muito menos alterar o curso natural do universo. Não pode curar um resfriado, muito menos câncer, AIDS ou regenerar um membro amputado. Ao invés disso, precisamos de Medicina, que possui evidências estatísticas concretas de sua existência e eficácia.
  2. Por que há tantas pessoas passando fome no mundo? Porque Deus é imaginário. A miséria não é um resultado de um plano místico por parte de uma figura da superstição humana, tampouco o sucesso capitalista. Estes fatos são resultados de uma intricada dinâmica social, que envolve a história, os recursos naturais da geografia, o funcionamento do capitalismo baseado em lucro — alguém sai ganhando as custas de outro que saiu perdendo —, política e crendices. Se quisermos resolver este problema, não devemos o atacar com fé. Devemos entender essa complicada dinâmica social e apontar onde ela pode ser melhorada para minimizar a diferença em oportunidades de diferentes povos.
O material de God is Imaginary é uma pérola na Internet. Um lugar de convite ao pensamento crítico e racional e reflexão sobre a religião que todo cristão inteligente deveria conhecer.

De onde veio toda a matéria do universo?

Um grande desafio na compreensão da origem do universo é saber que processo físico natural gerou toda a matéria que mais tarde formou as galáxias, planetas, nós. No modelo do Big Bang supõe-se que o universo começa muito quente, já populado de um grande número de partículas. Começando de um universo cheio de nêutrons, prótons, elétrons, pósitrons e fótons, e supondo que estes constituintes dominaram a densidade do universo quando a temperatura era de aproximadamente 1010 K, é possível calcular vários aspectos da evolução subseqüente do universo. É possível calcular que do peso total dos elementos químicos presentes no universo que foram criados após essa época, cerca de 70% é hidrogênio, 27% hélio, e uma pequena porcentagem de elementos mais leves até o lítio.


Porém, de onde vieram estas partículas e por que o universo começou tão quente?

Na década de 80 foi descoberta  uma idéia que pode ser a resposta: a inflação. Basicamente, supõe-se que o universo era dominado por um falso vácuo com uma energia que passou a diminuir lentamente (em comparação com a taxa de expansão do universo).  É um vácuo porque não tem partículas, mas é falso porque na realidade não representa a menor energia possível do universo. Um vácuo verdadeiro seria aquele estado estável de mínima energia.

A Relatividade Geral diz que a expansão de um universo dominado pela energia de um falso vácuo metaestável como este é exponencial: as distâncias típicas escalam com exp(Ht), onde t é o tempo e H é aproximadamente constante. Quando o universo faz a transição de ser dominado por este vácuo para ser dominado por matéria a alta temperatura, a expansão resulta em um universo com curvatura espacial zero. Isso significa dizer que ao medir os ângulos internos de um triângulo formado por galáxias muito distantes, a soma é 180°. Isso de fato é observado experimentalmente (lembre-se que na teoria da Relatividade Geral, é possível violar esse teorema da geometria espacial plana!).  


O que acontece é que a densidade de curvatura é dada por uma equação do tipo k/a(t)H(t), onde k é uma constante, a(t) é chamado de fator de escala e H(t) é o parâmetro de Hubble, e t é o tempo. A quantidade a(t) representa o fator pelo qual a distância espacial d entre dois pontos escala no universo: d(t) ~ a(t)d0 para certa constante d0.  Em um universo que expande exponencialmente, H = a/(da/dt) é constante, logo a densidade de curvatura vai a zero com a(t)-2 com o aumento de a(t).


O que mais me impressiona no modelo inflacionário é como ele resolve a pergunta de onde veio a matéria do universo. Para que o vácuo perca densidade de energia e o universo saia do período inflacionário, pela conservação da energia esta é convertida em partículas no universo. Isso é possível da mesma forma que um carrinho parado no alto de uma colina converte energia potencial gravitacional em energia cinética a medida que desce a colina. O paradigma padrão do modelo inflacionário é supor que existe um campo escalar que desce uma colina de energia potencial, mas nesse caso seria energia potencial do próprio campo escalar (e não gravitacional). Outros mecanismos físicos podem gerar o mesmo efeito, como campos vetoriais massivos (há exemplos na Natureza de campos vetoriais assim: o campo do W e do Z). 

Esta idéia é bastante robusta e faz previsões específicas sobre o universo. Por exemplo, embora o universo seja homogêneo e isotrópico em larga escala, existe uma pequena inomogeneidade: a densidade de uma galáxia é bem diferente da densidade do meio extragalático. O padrão de inomogeneidades do universo é fundamental, pois é esta inomogeneidade que fez matéria se acumular aqui e ali para formar as galáxias. Podemos observar como as inomogeneidades variam conforme se observa regiões cada vez menores do universo como um todo. A inflação faz uma previsão definitiva para a forma das inomogeneidades com a escala de tamanho, e esta previsão já foi observada experimentalmente. As medidas astronômicas da forma das inomogeneidades do universo foi feita pelo satélite WMAP da NASA. Até o momento, esta é a principal evidência experimental de que o universo pode ter sofrido inflação antes de entrar no Big Bang.

A inflação faz outras previsões sobre o universo que podem ser observadas no futuro. Entre elas, há o espectro da radiação gravitacional primordial. O experimento LISA que vai buscar ondas gravitacionais poderia ter sensibilidade suficiente para detectar as ondas primordiais. Ou pelo menos se LISA acontecer e for bem sucedido, uma nova geração de experimentos seria capaz de observar as ondas gravitacionais do início do universo e colocar a inflação em teste.

Ainda não há evidências suficientes que sustentem a inflação como algo real. Que o universo é plano já era sabido antes da teoria ser proposta, e de fato, não é necessário supor a inflação para simplesmente colocar a mão uma curvatura zero no universo. A inflação apenas diz porque a curvatura é zero. As medidas do espectro de inomogeneidades ainda não são precisas o suficiente para excluir diferentes modelos de inflação ou alternativas.  Isso talvez seja resolvido com o experimento Planck. Há uma pletora de mecanismos físicos conhecidos que poderiam ser responsáveis pela inflação, e se esta foi real, qual deles é o certo é desconhecido. 

Porém, a teoria da inflação faz previsões bem claras sobre o universo que serão testadas pelos próximos experimentos. Além disso, ela é belíssima, no sentido de ter um apelo teórico de inevitabilidade: se o universo veio a existir a partir de um instante t = 0, é muito mais natural supor que ele não poderia estar populado por nada, e ter começado em um estado completamente evacuado, ao invés de imaginar um universo que já nasce populado de partículas. Se imaginarmos que a distribuição da posição do campo que gera a inflação com respeito a colina do potencial começou mais ou menos caótica por todo o espaço, haverá vastas regiões espaciais onde o campo estará na posição adequada para interagir com a gravidade de forma a gerar inflação. O decaimento do falso vácuo em direção ao vácuo por perda de energia para a expansão do universo vai inevitavelmente popular o universo com matéria quente, e então gerar o Big Bang.

Dessa forma o universo é um verdadeiro almoço de graça, sendo tudo que existe resultado espontâneo da criação do próprio vazio!

Para saber mais,
  1. A Guth & D Kaiser, Science 307, 5711 [para quem tem assinatura]; M Turner, Nature Physics 4 89-91 (2008).
  2. A. Guth, "O Universo Inflacionário", Ed. Campus
  3. Sobre o espectro de inomogeneidade, considere esta reportagem da Sciam Brasil.

"ITA da Amazônia"

Notícia de anteontem:


Um grupo de acadêmicos da Academia Brasileira de Ciências, entre eles o Jacob Palis (ganhador do Prêmio TWAS), montou um projeto para o governo investir cerca de R$30 bilhões durante dez anos para o estabelecimento de um centro tecnológico de ponta na região amazônica.

Comentário sobre a notícia:

"A estrada para o inferno é cheia de boas intenções", como diz o ditado. Eu acho que há algumas falhas com o projeto, se alguém está pensando que ele realmente colocará o Brasil como "o primeiro país tropical do primeiro mundo". Infelizmente no Brasil impera a mentalidade de que é o governo que tem que fazer, e se o governo não faz, então a culpa só é dele. Logo, de quem é a responsabilidade por trazer um projeto sustentável de tecnologia para a Amzônia? Do governo. A Vale do Rio Doce, a Alunorte e as madeireiras que devem ter um rendimento anual superior (fazendo eu aqui minha estimativa do guardanapo) a R$20 bilhões, não precisam fazer nada. 

Se o projeto sair do papel, o resultado na melhor das hipóteses será o seguinte: algo realmente parecido com o modelo São José dos Campos, ou seja, uma indústria do início do século 20 sendo vangloriada como revolucionária em pleno século 21, e que de quebra não consegue nem se equiparar a indústria pesada internacional dos países ricos, vinculada a uma imagem de um ensino superior competitivo internacionalmente, mas que na realidade tem indicadores de produção científica e tecnológica de regular a péssimo, e que não se compara de nenhuma forma nem mesmo a produção científica e tecnológica dos Tigres Asiáticos, e ainda perde um pouco para a chilena e argentina [1].

O pólo de economia tecnológica dos Estados Unidos foi fundado por quem? A IBM, Apple, Microsoft, Genentech, Monsanto, etc. não são estatais. Apenas a IBM já produziu cinco Prêmios Nobel em Física e Química, enquanto o Brasil todo: zero. A minha experiência na USP, uma universidade pública, é a de que o modelo burocrático da máquina pública brasileira, com regimes de trabalho com estabilidade infinita e supersalários desproporcionais ao desempenho do funcionário ou da instituição, é um fracasso. Professores que não precisam correr atrás do seu salário com relatórios de pesquisa (o salário é garantido!), alunos que não precisam ter desempenho acadêmico bom para permanecer na escola, e uma inversão de valores onde 90% ou mais do orçamento da instituição que era para ser uma universidade de pesquisa é gasto com salários de funcionários e professores ao invés de pesquisa, extensão e estrutura educacional. E tudo isso a custo de 11% do ICMS do Estado, para ser usado exclusivamente por uma pequeníssima parcela da população. Para completar, a maioria dos alunos teria condições de pagar uma instituição particular de ensino: uma única rua do Jardins (bairro rico da capital de São Paulo) tem mais alunos na USP que toda a região sul da cidade (parte mais pobre).

Com tanto dinheiro nas mãos da Vale e da Alunorte, e sabe-se lá que outras empresas farmacêuticas que usam propriedade amazônica, mais as madeireiras, será que ninguém ali jamais pensou em criar um modelo efetivo de desenvolvimento tecnológico e científico livre das mazelas da corrupção do Estado?

Parece que no Brasil essa vai ser uma idéia revolucionária: o dia em que cair a ficha de porquê 80% da economia dos Estados Unidos é direta ou indiretamente produto de física básica [2], e as indústrias brasileiras vão deixar de serem produtoras de alumínio para serem, quem sabe, produtoras das novas tecnologias que colocarão os computadores digitais no passado.

Por enquanto, nós ainda compramos a TV digital dos outros e vendemos laranja, e achamos um bom negócio — falando nisso, porque a Globo, que tem milhões para jogar fora no Big Brother, não criou um laboratório de desenvolvimento de TV digital nos anos 80? E se o governo não montar a fábrica pré-pronta de tecnologia de 50 anos atrás — importada da alemanha, claro — para ter emprego para os engenheiros formados, então todos estes engenheiros vão preferir virar bancários (e muita vezes de banco estatal!). Engenheiro criar indústria nova? Criar oportunidades com suas próprias mãos? Que isso, emprego é papel do Estado! Esse é o nosso Brasil.

Eu não acho que tudo seria resolvido se as empresas tomassem essa iniciativa. Creio que é necessário uma combinação de estado e iniciativa privada, cada um exercendo a parte que lhe cabe. A máquina pública brasileira é burocrática e faz o dinheiro passar pelas mãos de muita gente antes de chegar ao destino, potencializando a corrupção. A máquina púbica tem renda garantida e não sofre a mesma pressão de "seleção natural" que o mercado exerce, contribuindo para uma menor preocupação com a excelência. 

Vamos ver se vai sair do papel, e no que vai dar.


Notas
  1. A realidade do modelo São José dos Campos é a seguinte: produção de patentes inferior a USP, Unicamp, UFMG, UFRJ e UNESP, e várias empresas, não figurando nem entre os 20 maiores produtores de inovação tecnológica do país, ou nem 0,3% das patentes nacionais; notas de pós-graduação da CAPES razoáveis, mas abaixo das engenharias da USP, Unicamp, UFRJ, UFPE e outras; completa invisibilidade na avaliação internacional do Times Higher Educational Supplement ou do Academic World Ranking, enquanto instituições de tecnologia de Cingapura, China/Hong Kong, Twain, Chile, e Argentina aparecem no ranking. Nestes rankings, um pouquinho melhor classificadas (mas longe de algo de realmente orgulhoso) são a USP e a Unicamp.
  2. Isso foi um estimativa feita pela American Physical Society.