Mario Schenberg (1914-1990): Física, Política e Arte

Mário Schenberg foi um grande físico teórico brasileiro com grande interesse na política e nas artes plásticas. Ele nasceu em Recife em 2 de julho de 1914, mas sua família visitava constantemente o Rio de Janeiro, onde passou grande parte de sua infância. Aos treze anos teve seu primeiro contato com a geometria e a física que o encantaram. Também nesse mesmo ano conheceu as idéias marxistas, lendo o periódico Cultura, que o levaram imediatamente a sua primeira participação política apoiando a Coluna Prestes no último ano do movimento.
Ingressou em 1931 na Escola de Engenharia de Pernambuco em Recife e lá teve contato com sua primeira forte influência: Luiz Freire — instigador de tantos outros espíritos científicos, como o de José Leite Lopes. No terceiro ano, transferiu-se para a Escola Politécnica da USP, onde se formou engenheiro eletricista em 1935. Com a criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP em 34, ele ingressa na turma de matemática, onde teve aulas com Gleb Wataghin e o matemático italiano Luigi Fantappié. Em 1936, obtém seu grau em matemática na primeira turma da recém criada faculdade. No último ano de engenharia (1935), já havia preparado um trabalho na incipiente eletrodinâmica quântica[1]. Formado, foi contratado como assistente no laboratório de Wataghin. No ano seguinte, desenvolveu a representação do funcional delta de Dirac através da integral de Stieljes, trabalho que foi indicado à publicação por Tullio Levi-Civita nos anais da Academia dei Lincei [2]. Pouco depois, em 1938, subsidiado pelo governo do estado de S. Paulo, foi para a Itália trabalhar com Enrico Fermi a respeito da eletrodinâmica quântica.
Enquanto trabalhava com Fermi, desenvolveu a hipótese da origem dos raios cósmicos a partir de mésons, e não fótons e elétrons, como se supunha na época. Como Fermi não acreditou no trabalho, Schenberg só veio a publicá-lo em 49 no Brasil, nos Anais da Acad. Bras. de Ciências. Este trabalho está citado no livro de Heisenberg sobre raios cósmicos.
A ascensão do fascismo levou Fermi aos Estados Unidos e Schenberg mudou-se para Zurique, onde trabalhou com Wolfgang Pauli. Logo antes da guerra estourar em 39, Schenberg foi para Bélgica a fim de voltar ao Brasil. Antes, passou por Paris, onde ficou alguns meses como visitante no Collège de France, dando seminários, no ambiente junto com F. Joliot-Curie e P. Langevin. Lá ele conheceu o artista Di Cavalcanti.
De volta ao Brasil no final de 38, Schenberg recebeu bolsa da Fundação Guggenheim para ir trabalhar nos Estados Unidos, onde permaneceu durante a guerra. Foi a Universidade de Washington, onde estava George Gamow que Schenberg já havia conhecido anteriormente no Brasil. No final da década de 30, Gamow investigava o processo de colapso das estrelas que leva às supernovas. Os cálculos já realizados por Gamow não incluíam o neutrino, que era idéia recente. Notando isto, Schenberg aperfeiçoou o modelo, e o neutrino acabou por desempenhar o papel crucial no mecanismo das supernovas[3], sendo responsável em parte pela dissipação de energia nas estrelas. O processo de "roubo de energia" pelos neutrinos foi chamado de processo urca. A razão do nome vem de encontros anteriores de Gamow e Schenberg, quando os dois foram certa vez ao cassino da praia da Urca (próximo de onde hoje é o CBPF), onde teriam perdido dinheiro em apostas na roleta. Gamow, de quem se tem tantas histórias de irreverência, salientou que os neutrinos roubavam a energia do interior das estrelas com tanta rapidez quanto o dinheiro sumia na roleta do cassino da Urca. Na comunidade internacional, o mecanismo das supernovas é mais conhecido por ser acrônimo de Ultra Rapid CAtastrophe. Curiosamente, a palavra 'urca' transliterada para cirílico é expressão coloquial para ladrão na região sul da Rússia, inclusive em Odessa, onde Gamow nasceu[4].
Schenberg em seguida foi para o Instituto de Estudos Avançados de Princeton onde realizou novamente trabalhos com Pauli a respeito de relatividade geral (dos quais destacou-se a primeira observação do momento angular do campo gravitacional) e um sobre interações fracas que não conservam paridade — precedendo o trabalho de C. N. Yang e T. D. Lee. No mesmo ano, ainda trabalhou com S. Chandrasekhar no observatório de Yerkes a respeito da evolução do Sol[5].
Schenberg voltou em 1942 para a USP. Coordenou um trabalho a respeito da teoria do elétron pontual, no qual trabalharam Leite Lopes, Walter Schützer e César Lattes[6]. A partir de 1944, assumiu a cátedra de mecânica racional e celeste, e passou a contribuir crucialmente para formação de novos pesquisadores no Instituto de Física da USP (IF USP).
A partir de 1948, Schenberg passou seis anos na Europa, trabalhando na Universidade Livre de Bruxelas. Quanto voltou ao Brasil, assumiu a diretoria do IF USP que manteve até 1961. Desta época criou o grupo de estado sólido (labs. de baixas temperaturas e ressonância magnética) com recursos federais e o apoio de Ulysses Guimarães, antevendo a importância destas pesquisas para o avanço tecnológico. Na época, seus colegas, incluindo Oscar Sala, desfecharam críticas a essa iniciativa, pois consideravam a física nuclear o paradigma de aplicação. Schenberg ainda propôs a instalação do primeiro computador na USP, o que foi realizado na Escola Politécnica sob sua supervisão.
Na década de 60, Schenberg foi convidado a integrar o grupo de física teórica do CBPF onde colaborou com a formação de jovens pesquisadores como Jorge André Swieca.
Membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB), em 1946 foi eleito deputado estadual em S. Paulo. Como tal participou da Assembléia Nacional Constituinte de 1946 e propôs a lei que instituiu o curso noturno na universidade. Em maio de 1947, o PCB foi cassado: Schenberg e seus companheiros estavam na ilegalidade. Ficou dois meses preso. Em 1962 foi novamente eleito deputado estadual pelo PTB com a maior votação do partido no estado, porém não pôde exercer a função por ser ex-membro do PCB. Com o regime militar, foi preso, torturado e ficou foragido. Lattes coletou assinaturas da comunidade científica internacional solicitando o relaxamento de sua prisão, para que pudesse ir ao Japão a um congresso o qual estava convidado. O governo cedeu, Schenberg viajou, mas não pediu exílio, fazendo questão de voltar. Com o AI-5 foi aposentado compulsoriamente e proibido de ir a USP e ao CBPF. Da opressão de sua atividade política guardou forte mágoa, “há certas coisas que a gente não deve esquecer, porque se a gente esquece, perdoa; e certas coisas não devem ser perdoadas” disse mais tarde relembrando os anos de ditadura. Em 1979, com a anistia, foi reintegrado ao corpo docente da USP. Enquanto esteve afastado, dedicou-se mais a crítica da arte plástica, tendo publicado livros e resenhas que se tornaram referências.
No final de sua vida, tornou-se pesquisador emérito do CPBF (1988) e da USP (1987), recebeu várias honras como Cidadão Paulistano (1986). Gradativamente, Schenberg apresentou os sintomas de Alzheimer, mal que o levou a morte em 10 de novembro de 1990. Na ECA USP, foi homenageado com a criação do Centro Mário Schenberg de Documentação e Pesquisa em Artes em reconhecimento de suas publicações como crítico.


Notas
  1. Schönberg, M. Nuovo Cimento (1936) [ref em falta]
  2. M. Schönberg. Rendiconti della Acad. Naz. dei Lincei, 20, 81 (1937).
  3. Gamow, G., Schönberg, M. Phys. Rev. 58, 147 (1940); Phys. Rev. 59, 539 (1941).
  4. A origem do nome em referência ao cassino é verídica, contada pelo próprio Schenberg (Cientistas Brasileiros, SBPC); Nadyozhin, D. K., Space Science Reviews, 74, 3-4 (1995), Springer.
  5. Chandrasekhar, S., Schönberg, M. Astrophys. J. 96, 161 (1942).
  6. Estes artigos serviram logo em seguida de base para a teoria de Feynman-Wheeler (cf. Wheeler, J. A., Feynman, R. P. Rev. Mod. Phys. 21 (1949)).
  7. Um fascinante relato sobre as interferências do regime militar é Bassalo, J. M. F., Freire, O., Jr. Rev.Bras. Ens. Fís. 25, 426 (2003).

Spintronica e o futuro dos computadores

O ano acadêmico começou e hoje tivemos o primeiro colóquio de 2008 do Departamento de Física, apresentado pelo físico Don Eigler do Centro de Pesquisa IBM em Almaden.

Poucas pessoas sabem, mas a pesquisa em física teve ligação direta com a invenção das tecnologias mais fundamentais para a existência de microcomputadores: o diodo e transistor. Uma pergunta importante para a física do estado sólido é explicar a condução elétrica em termos da natureza atômica da matéria. Esforços para compreender o transporte de elétrons em materiais datam de pelo menos meados do século 19, mas os modelos falhavam grosseiramente: vários fenômenos eram inexplicáveis (como a dependência da condutividade com a temperatura) ou as previsões eram erradas (como a propriedade termoelétrica, estimada 100 vezes maior, ou a contribuição dos elétrons para o calor específico). A razão disto é que o fenômeno da condutividade elétrica é em grande parte efeito da mecânica quântica dos elétrons se movendo em um meio com vários núcleos atômicos aqui e ali. Isto só pôde ser apreciado nos anos de 1928-1931, quando os físicos Felix Bloch, Rudolf Peierls e Alan H Wilson desenvolveram a teoria quântica do transporte dos elétrons nos materiais: a teoria das bandas eletrônicas. Aplicando esta teoria em laboratório, os físicos William Shockley, John Bardeen e Walter Brattain em 1947-48 inventaram o diodo e o transistor.

Desde então os físicos tem se interessado fortemente na compreensão das propriedades do estado sólido que possam levar a novas tecnologias. Um exemplo que está na moda é a descoberta do efeito da magnetoresistência gigante, que permitiu a indústria criar os discos rígidos em miniatura para laptops e iPods.



Science 289, 5597, p. 1381-1387
Circuito desenvolvido em 2002 na IBM Almaden, 12nm x 17nm. Science 289, 5597, p. 1381-1387

Já o grupo de Don Eigler na IBM em final de 2002 produziu o menor circuito digital jamais construído, de 17 nm de comprimento (mais de 200 mil vezes menor que os disponíveis no mercado, mil vezes menor que o núcleo de uma célula animal, apenas 200 vezes maior que um átomo de hidrogênio). Para isso, eles desenvolveram uma técnica de manipulação de átomos usando o microscópio de tunelamento que foi inventado na IBM em Zurique na década de 80. O circuito opera a poucos Kelvin de temperatura (cerca de -270 °C) e demora quase 1h para processar informação, portanto ainda não é tecnologia de mercado. O trabalho foi publicado na Science. Mas a grande inovação aqui é fazer um circuito a base da idéia de cascata, análoga a um computador feito a base de dominó.

Uma fila de dominós em que um derruba o próximo pode, naturalmente, transmitir informação. A informação "o primeiro dominó foi derrubado" é propagada ao longo de uma linha reta de dominós por exemplo. Agora, também é possível construir portas lógicas com dominós, basta arranjar a cascata de forma adequada (o vídeo em inglês abaixo explica a idéia). Uma característica importante do sistema é que cada elemento (dominó) só pode influenciar seus vizinhos (só derruba quem está "a frente"). Num computador real, influência a longa distância poderia ser o efeito de uma corrente passando em um fio de cobre gerar ruído em outro fio vizinho.





Ora, que sistema da física do estado sólido se comporta dessa maneira? São os spins dos átomos em sólidos: cada spin interage apenas com o seu vizinho, e eles tendem a se alinhar devido a força magnética. Em 2006, o mesmo grupo de Don na IBM construiu a primeira cascata de spins, i.e. uma cadeia de dominós onde cada dominó é um único átomo e a interação entre os dominós (que permite um derrubar o outro) é a força magnética. O projeto foi liderado por Cyrus Hirjibehedin e publicado na Science.

Imagine o potencial de miniaturização dessa tecnologia: o uso de alguns poucos átomos (~ dez átomos) para construir um circuito lógico completo, o qual pode então ser usado em um computador. Menor que isso impossível! grin

Ainda não foi possível construir cascatas de spin comercialmente viáveis, mas Don nos assegurou que o grupo da IBM em Almaden está trabalhando duro nesse sentido.

Uma nota marginal: para aqueles que já ouviram falar em computação quântica, os sistemas de cascata de spin são computação clássica, como a realizada nos computadores modernos. A única diferença é o potencial de miniaturização.

Marcelo Damy de Souza Santos (1914-) e a Física Nuclear no Brasil

Em 1936 formava-se a primeira turma da recém criada FFCL da USP. Entre os formandos, estava o jovem bacharel e licenciado em Física Marcelo Damy de Souza Santos, um dos físicos experimentais brasileiros mais notáveis de todos os tempos.
Damy nasceu a 14 de junho de 1914 em Campinas, São Paulo. Sua família mudou-se para a capital com o desfecho do movimento que levou Vargas ao poder (1930). Possuía gosto pela eletrônica e consertava rádios para ajudar a renda familiar. Na insurreição paulista contra Vargas (Revolução Constitucionalista de 32), participou na Escola Politécnica da produção de granadas e morteiros. Ingressaria nesta escola no ano seguinte, onde formou-se em engenharia elétrica em 1935.
No segundo ano de engenharia, Damy teve sua primeira aula com Gleb Wataghin, que o atraiu para a física e o tornou assistente em seu laboratório. Por volta de 1936, Wataghin e Damy confeccionaram contadores Geiger-Müller para identificação de partículas eletricamente carregadas em raios cósmicos.

O British Council concedeu-lhe uma bolsa no ano de 1938 para continuar seus estudos de pós-graduação na Inglaterra, no Cavendish Laboratory da Universidade de Cambridge, sob orientação de W. Lawrence Bragg. Lá, Damy foi encarregado de verificar a presença de mésons nos raios cósmicos. Para tal, era necessário um circuito de coincidências muito curtas (~ ms) o que só foi possível com a confecção de um dispositivo especial por parte de Damy, capaz de medir tempos da ordem de 10ns. Os primeiros radares ingleses utilizaram o seu dispositivo para medir intervalos de tempo e em virtude disso ele foi convidado pela Inglaterra a participar do projeto de novas tecnologias bélicas durante a 2a Guerra. Foi então que o ministro do exterior Osvaldo Aranha considerou que se Damy era interessante para os ingleses, seria ainda mais interessante para o Brasil! laugh

Com a entrada inglesa na guerra e o subseqüente recrutamento das universidades para participar, Damy optou por voltar ao Brasil. O dispositivo desenvolvido em Cambridge, que na época era tecnologia exclusiva sua e do Cavendish, possibilitou a identificação da cascata de mésons produzidos simultaneamente pelos raios cósmicos ao reagir com a atmosfera, os chamados chuveiros penetrantes[1]. No ano seguinte a publicação do artigo, Damy assumiu a cátedra de Física Experimental e Geral do Dep. de Física da USP. Estes anos foram de intensa atividade do grupo de Damy, que em 40 realizou uma experiência em pareceria com Collège de France da qual obteve-se a primeira evidência da existência de correntes de íons a uma altitude equivalente a 1,5 diâmetros da Terra (fenômeno associado ao ainda não descoberto cinturão de Van Allen) e no ano seguinte recebeu no Brasil Arthur H. Compton, prêmio Nobel, e sua equipe de raios cósmicos.

No ano da publicação da descoberta dos chuveiros penetrantes, Damy e Paulus Aulus Pompéia foram convidados pela Marinha para dotar os submarinos brasileiros de um sonar. Os trabalhos foram inicialmente desenvolvidos no laboratório de Física da FFCL, mas depois que Getúlio Vargas visitou-os em ocasião do primeiro sucesso com o dispositivo, mudaram-se para a represa Santo Amaro, onde construíram um laboratório flutuante e o primeiro protótipo do sonar brasileiro, capaz de detectar a presença de embarcações num raio de 2 km. Testes subseqüentes, no entanto, mostraram grande dificuldade em limpar ruídos comuns. Depois de pesquisar diversas alternativas e sistemas já conhecidos pelos norte-americanos, Damy concebeu um sistema viável, dispositivo equivalente aos cristais de quartzo utilizados nos sonares da 1a Guerra (desenvolvidos por Lagevin e Florisson): um oscilador magneto-estritivo para emissão de ondas sonoras detectáveis por cristais piezoelétricos. O dispositivo final foi produzido em larga escala na USP (Geologia, Química, Física e IPT) em colaboração com a Marinha e passou a equipar os submarinos brasileiros. Com a nova tecnologia, a Marinha brasileira passou a levar comboios de Natal até a Argentina, o que antes necessitava do acompanhamento dos submarinos norte-americanos, em virtude de ataques do Eixo. Damy e Pompeia não patentearam os detectores. Este trabalho foi em 1962 laureado com a Medalha do Mérito Naval pela Marinha.

Finda a guerra em 1945, Damy voltou para suas atividades junto a Wataghin. Naquele ano, a fundação Rockefeller concedeu-lhes uma verba para construção de um acelerador de partículas. Damy foi aos Estados Unidos e passou 10 meses como professor visitante na Universidade de Illinois, onde aprendeu a tecnologia do Betatron com seu próprio criador: W. D. Kerst. Voltou ao Brasil, construiu e passou a operar o primeiro acelerador de partículas da América Latina, que iniciou suas atividades em maio de 1951. O objetivo do Betatron instalado era estudar reações foto-nucleares. Os trabalhos desenvolvidos renderam bolsas no exterior a dois assistentes de Damy: Oscar Sala e José Goldemberg, e contavam com a colaboração de José Leite Lopes na parte teórica.

Em 1956, o CNPq e o Conselho Universitário da USP decidem criar o Instituto de Energia Atômica (IEA), atual IPEN, em seqüência ao congresso internacional da utilização pacífica da energia atômica. Damy fora indicado para a diretoria e fundação do novo instituto, onde permaneceu até 1964 quando se instaurou o regime militar que o demitiu. Suas atividades no IEA deram origem ao primeiro reator nuclear no Brasil que começou a funcionar em 57.
No ano de 1966, Damy aposentou-se pela USP e recebeu o convite de Zeferino Vaz a colaborar com a construção da Unicamp, tendo coordenado a criação do Instituto de Física daquela universidade (IFGW), o qual foi o primeiro diretor. Decidiu-se que haveria três principais linhas de pesquisa: altas energias, a ser coordenada por Cesar Lattes, e que fora a primeira a ser implantada, estado sólido (Sérgio Porto da John Hopkins) e nuclear (ele próprio).

Divergências políticas devidas as intervenções militares fizeram Damy abandonar a Unicamp no final de 1971. Incansável, assumiu em 1973 cargo de professor titular na PUC-SP onde dirigiu o Centro de Matemática, Física e Tecnologia, implantou um laboratório de Física Nuclear e organizou os cursos de graduação e pós nesta área. Voltou a trabalhar no IPEN a convite em 1988.

Damy acumulou assim as homenagens de tornar-se emérito da USP (1984) e da PUC-SP (1994), além de diversos prêmios e medalhas, os mais recentes a Grã-Cruz do Mérito Nacional Científico (1994), IBM de Ciência e Tecnologia (1994) e Cidadão Paulistano (2002).

Bibliografia

Notas
  1. Wataghin, G., Pompeia, P. A., Santos, M. D. S. Phys. Rev. 57 (1940).

Gleb Wataghin (1899-1986)

Um dos primeiros centros de pesquisa em Física no Brasil foi a Universidade de São Paulo, criada em torno da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL-USP, já extinta) em 1934. O matemático brasileiro Teodoro Ramos foi ao exterior buscar auxílio para consolidação e início de atividades de pesquisa na nova universidade. Para o Dep. de Física, Ramos buscou o apoio de Enrico Fermi, que indicou um de seus ex-estudantes, o físico ítalo-ucraniano Gleb Vassielievich Wataghin, então professor na Universidade de Turim, Itália. Wataghin aceitou o convite e então fundou o atual Instituto de Física da USP. No Brasil, Wataghin conseguiu criar imediatamente um ambiente acadêmico de pesquisa.
Nascido em Birsula, Ucrânia, em 3 de novembro de 1899, completou seus estudos pré-universitários em Kiev e antes da revolução russa refugiou-se em Turim. Formou-se em física e matemática com louvor na Universidade de Turim, onde tornou-se professor catedrático de física superior a partir de 1929 e naquele ano naturalizou-se italiano. Nestes primeiros anos em Turim, Wataghin concentrou-se em trabalhos a respeito da natureza dos raios cósmicos.
Chegado ao Brasil, Wataghin lutou pelo cumprimento de sua missão: começou a construção de um laboratório de raios cósmicos, continuando em parte a pesquisa que vinha desenvolvendo na Itália, e recrutava alunos da escola de engenharia para o seu laboratório e suas aulas de física. Formou nos primeiros anos Marcelo Damy, Mário Schenberg, Paulus Aulus Pompeia, Cesar Lattes, Walter Schützer, Sonja Ashauer (posteriormente aluna de Dirac em Cambridge) e Abrahão de Morais, para citar apenas alguns. Das gerações futuras, Oscar Sala e Roberto Salmeron. Juntou-se em 1938 a ele o físico italiano Giuseppe Occhialini, vindo do Laboratório Cavendish em Cambridge, que havia recentemente descoberto o pósitron com Patrick Blackett independentemente de Carl Anderson, e elucidado o processo de produção de pares elétron-pósitron[1].
Uma história curiosa é a seguinte: por volta de 1937 o laboratório de raios cósmicos em construção de Wataghin foi expulso da Escola Politécnica, por ordem do diretor da escola Henrique Guedes. O laboratório fora desmanchado, livros e equipamentos ficaram pelo corredor. O ex-reitor Reinaldo Porchat interviu e conseguiu uma pequena sala no sótão do prédio principal da Politécnica. Foi nesta nova sala que Damy começou seus trabalhos com Wataghin e onde um dos experimentos mais importantes dos primeiros anos da física brasileira teve início.
Wataghin, Pompeia e Damy publicaram em 1940 a observação da produção simultânea de partículas penetrantes na radiação cósmica[2]: era a descoberta dos chamados chuveiros penetrantes, o mecanismo de interação dos raios cósmicos com a atmosfera terrestre. Os chuveiros penetrantes foram anteriormente previstos teoricamente pelo próprio Wataghin.
Os trabalhos de Wataghin e seus alunos atraiam para a USP bolsas das fundações Rockefeller e Guggenheim e do British Council, o que tornou possível que estudantes prosseguissem suas formações em ambientes acadêmicos tradicionais, incluindo as universidades de Cambridge, Chicago, Princeton, Bristol, Roma, Bruxelas e o Instituto de Estudos Avançados de Princeton. O amparo nacional as pesquisas só se consolidaria em 1951 com a criação do CNPq, a qual esteve à frente um de seus alunos, César Lattes.
Em 1948, Wataghin propôs que os elementos químicos pesados eram produzidos em processos dentro das estrelas, o mecanismo que hoje se considera a correta explicação para a origem dos elementos pós-lítio (pesados) no universo[3].
No ano seguinte, com sua missão concluída no Brasil, Wataghin voltou para Turim para ajudar na reconstrução da Itália no pós-guerra. Instalou lá dois aceleradores de partículas: um betatron de 30 MeV (1954) e um síncroton de 100 MeV. Foi nomeado membro da Academia de Ciências de Turim e da Academia dei Licei e recebeu o prêmio Feltrinelli em 1951 pela descoberta dos chuveiros penetrantes. Desta época seus trabalhos foram principalmente em colaboração com Romolo Deaglio e Mario Verde e ainda manteve colaboração com seus estudantes brasileiros.
Wataghin morreu em Turim em 1986. Seus alunos consolidaram a Física no Brasil com a criação do CBPF, o Instituto de Física “Gleb Wataghin” da Unicamp, o Dep. de Física da PUC e a ampliação do Instituto de Física da USP, como teremos a chance de relembrar em posts futuros. Graças a seus esforços de quinze anos de dedicação ao início da produção científica no Brasil, hoje o país dispõe de estruturas para participar da produção de conhecimento humano em física.

Bibliografia
Outras fontes, além das citadas no post anterior incluem:
  1. P. M. S. Blackett, G. P. S. Occhialini. Proc. Roy. Soc., A 139, 699 (1933).
  2. G. Wataghin, P. A. Pompeia, M. D. S. Santos. Phys. Rev. 57 (1940).
  3. G. Wataghin. Phys. Rev. 73 (1948). Curioso que no mesmo ano o modelo do Big Bang quente foi proposto por Gamow e este tentou, inicialmente, produzir os elementos pesados já no universo primordial. No entanto, ficou claro com os estudos de Gamow e Alpher que a nucleossíntese do Big Bang não era capaz de gerar os elementos depois do Li, que só poderiam ter sido criados, como bem descobriu Wataghin, nas estrelas.

Ensaios biográficos

Quando eu era aluno da graduação, preparei alguns ensaios biográficos sobre a vida de Marcelo Damy, César Lattes, José Leite Lopes, Mário Schenberg, Jayme Tiomno e Gleb Wataghin, todos estes são físicos que tiveram importância ímpar para o desenvolvimento da física e da ciência no Brasil. Também fiz uma entrevista com o Marcelo Gleiser, com o intuito de preparar um ensaio no mesmo estilo. Os ensaios são curtos e deveriam ter sido publicados pelo jornalzinho do centro acadêmico do Instituto de Física da USP. Infelizmente, apenas um deles foi publicado, agora não lembro qual. As próximas postagens desse blog serão estes ensaios e a entrevista com o Marcelo Gleiser, começando por Gleb Wataghin. Os ensaios irão contar um pouco da vida pessoal e acadêmica dessas grandes figuras, das dificuldades para encontrar incentivo a pesquisa, a criação do CNPq, CBPF, USP, Unicamp e outras instituições de ensino superior, o retrocesso intelectual instaurado pelo regime militar e outras histórias.happy Pretendo colocá-los online um por semana. Comentários com acréscimos e correções serão muito bem vindos!

Acho que esse material pode ter algum valor para quem quiser ter uma noção da história da física no Brasil. As fontes gerais são:

  1. Cientistas do Brasil, SBPC (1998). Este livro pode ser comprado diretamente da SBPC e também está disponível na íntegra na Internet: http://www.canalciencia.ibict.br/notaveis/
  2. Biografias da Academia Brasileira de Ciências.
  3. Cientistas Brasileiros: César Lattes e José Leite Lopes, documentário de José Mariani, Prefeitura do Rio de Janeiro, RJ (2003).
  4. Marques, A. (ed), César Lattes 70 Anos, CBPF/MCT, Rio de Janeiro (1994)
  5. J. Leite Lopes, Uma história da física no Brasil, Ed. Livraria da Física, São Paulo (2004)
Algumas outras fontes mais específicas serão citadas em cada ensaio. Nas fontes é possível ter uma visão bem mais completa: os ensaios são apenas resumos de duas páginas ou menos cada. Outro livro que pode servir de referência, porém não o usei, é a coleção História das Ciências no Brasil, organizado por Mário Guimarães Ferri e Shozo Motoyama, Edusp (fora de catálogo).

As variedades da experiência científica

Acabei de ler nessas férias o belíssimo livro The Varieties of Scientific Experience (As variedades da experiência científica) de Carl Sagan. A versão original pode ser encontrada aqui e a edição em português de Portugal aqui. O subtítulo do livro é uma visão pessoal da busca de Deus. Até onde eu saiba é o único livro de Sagan que fala explicitamente sobre religião. O livro é póstumo e foi publicado no final de 2006, editado pela sua esposa Ann Druyan e consiste nas Palestras Gifford de 1985 apresentadas por Sagan. Esta série de palestras é sobre teologia natural, i.e. aspectos da religião que não são obtidos por revelação divina. Ao longo da sua existência, esta série de palestras já apresentou idéias de diversos intelectuais, teólogos e cientistas, como os físicos Arthur Eddington ('26-'27), Niels Bohr ('48-'50), Werner Heisenberg ('55-'56), Freeman Dyson ('85), Roger Penrose ('92-'93) e humanistas do porte de Hannah Arendt ('72-'74) e Noam Chomsky ('05). O livro contém belas imagens coloridas do cosmos, bem típicas da paixão do astrônomo pelo mundo natural e também um apêndice com transcrições parciais das sessões de perguntas e respostas ao final de cada palestra.

Com sua diplomacia intelectual característica, Sagan fala sobre as razões para acreditar em um Deus ou outros entes sobrenaturais que poderiam intervir no rumo do universo em especial no quotidiano humano. Sem palavras ásperas ou ataques, Sagan tenta construir um momento de reflexão para todos que tem interesse em avaliar sua fé. É um livrinho muito salutar para qualquer pessoa, e é um dos poucos com alguma chance de abalar a fé dos religiosos liberais, contrastando bastante com os mais vendidos de Richard Dawkins e Sam Harris. Infelizmente, como Sagan mantém um discurso sereno e cheio de conteúdo ao invés de inflamar corações, é bem provável que ele não figurará entre os mais lidos.

Aqui eu gostaria de colocar alguns pedaços do livro que mais me chamaram atenção.

Metafísica

Um dos aspectos da experiência religiosa é a metafísica, aquelas idéias sobre a existência, em algum sentido, de "apêndices" da realidade, da natureza. Por exemplo, a idéia de que os relâmpagos são fisicamente lançados por um homem gigante e muito forte no alto do monte Olimpo; ou a existência dos milagres, de anjos, espíritos e outros entes imateriais que podem se comunicar direta ou indiretamente conosco; ou uma consciência omnipotente que arquitetou e executou o programa da vida no universo. Vamos começar a refletir sobre este aspecto lembrando que na Idade Média acreditava-se que eram os anjos que empurravam os planetas no céu. Hoje temos a compreensão de que existe gravidade no universo. No final das contas, o aspecto metafísico da religião busca buracos na ciência e os preenche com uma hipótese do gênero: "se isso não se explica pelo movimento de elétrons, então só pode ser obra divina". Mas o fato de não termos uma compreensão completa de um fenômeno não significa que uma explicação racional, objetiva e matemática, não exista. De fato, a história tem mostrado sistematicamente que várias das idéias da metafísica da religião de séculos passados foram explicadas em termos científicos que gerou um poder de explicação muito mais abrangente. Pense por exemplo em como a hipótese de que os relâmpagos são produto de Zeus poderia nos levar a construir o aparelho de rádio.

Hoje em dia a maioria das pessoas não disputaria com a ciência o que produz o relâmpago. Embora o princípio seja o mesmo, há pessoas que aderem a concepções de mundo logicamente inconsistentes que aceitam a explicação científica para o relâmpago mas acreditam que apenas no que diz respeito a criação do universo e da vida, e somente nisso, há um dedinho de Deus. O capítulo 3 do livro de Sagan versa sobre esse debate. Algo de muito interessante que aprendi nesse capítulo é que as moléculas orgânicas mais simples os blocos químicos que compõe os aminoácidos, proteínas, DNA e RNA são muito comuns em lugares inesperados do universo, como por exemplo a cauda de um cometa. Além disso, no próprio sistema solar há corpos como os satélites de Saturno Iapetus e Titã que contém água e moléculas orgânicas (como cianeto, hidrocarbonetos, metano, álcoois). Titã em especial contém uma atmosfera dominada por nitrogênio, assim como é a da Terra (nós vivemos numa atmosfera quase 70% de gás nitrogênio). Carl Sagan expressa sua admiração por esse mundo:

Eu acho que é algo muito interessante que há um mundo no sistema solar exterior carregado de material para vida. E nós podemos calcular, dada a taxa com que esses materiais são formados hoje em Titã, quanto destes materiais acumulou lá ao longo da vida do sistema solar. A resposta é equivalente a uma camada de pelo menos cem metros de espessura por todo Titã e possivelmente quilômetros de espessura. [...] E, coincidentemente, há também evidências que há uma camada de oceano de hidrocarboneto líquido. Então, apenas pense sobre esse ambiente. Há terra, provavelmente há oceano. A terra é coberta por essa camada orgânica que cai do céu. [...] O que aconteceu com esse material ao longo de 4,6 bilhões de anos? Quão complexas são as moléculas lá?

A presença de moléculas orgânicas em várias partes do universo, produzidas pela ação das reações nas caudas de cometas ou formação de atmosferas de planetas e satélites indica que a vida deve ser muito comum no universo. Só o telescópio espacial Hubble é capaz de enxergar 1020 estrelas (equivalente ao número de grãos de areia de toda a superfície da Terra!). Como o Sol é uma estrela típica, muitas dessas estrelas possuem sistemas planetários, e tal como o nosso, provavelmente produziram ao acaso a vida, uma vez que moléculas orgânicas estão disponíveis em abundância na formação desses sistemas. Como a evolução é um relojeiro cego, alguns desses mundos podem ter produzidos apenas micróbios, outros podem ter produzido seres muito mais inteligentes que os seres humanos. Não temos evidências de que há vida fora da Terra, todavia a argumentação precedente indica que ela muito provavelmente existe. Se um dia o projeto SETI ou outro similar fizer contato com extraterrestres inteligentes, será algo profundo para repensar o quão importante os seres humanos são para esse universo e se o criador realmente intervém a nosso favor em qualquer situação.

Folclore sobre extraterrestres


Sagan foi um explorador espacial, então muito lhe interessava alegações sobre visitas de alienígenas. Ele relata com mais cuidado sua experiência no ramo da investigação de relatos de abdução em O Mundo Assombrado Pelos Demônios (Cia. das Letras). É evidente que para critérios razoáveis de veracidade nunca fomos visitados por alienígenas. Sagan compara a experiência que teve com estas investigações com os relatos das experiências religiosas e dos milagres. Muitas pessoas genuinamente tem experiências religiosas, dizem ter visto milagres ou terem sido elas próprias salvas por milagres. Isso contudo não significa que a coisa seja como alegado. Por exemplo, uma experiência religiosa muito relatada é a sensação de atravessar um túnel com uma luz intensa no final. Esta experiência é descrita por muitas pessoas reanimadas por desfibriladores. Esta sensação é real e pode ser obtida num experimento controlado como na decolagem de um avião supersônico. O que acontece é que a desoxigenação rápida do cérebro, característica deste experimento controlado ou de certos tipos de paradas cardíacas, causa essa alucinação. As pessoas podem ser facilmente enganadas por si próprias, por desconhecerem o funcionamento de ilusões de óptica, alucinações ou delírio. Em alguns casos a questão é pura fraude. De qualquer modo, a respeito disso é muito forte o pensamento do político Thomas Paine, como citado por Sagan:

É mais provável que a Natureza sairá do seu rumo ou que um homem contará uma mentira?
Nós nunca vimos no nosso tempo a Natureza sair do seu curso. Todavia há evidências de que milhões de mentiras já foram contadas no mesmo tempo. É portanto pelo menos um milhão para um que um relator de milagres está mentido.

Ou na versão de David Hume, com um pouco mais de significado para o cristianismo:

Quando alguém me diz que viu um homem ressuscitar dos mortos, eu imediatamente me pergunto o que seria mais provável: esta pessoa estar mentido ou ter sido enganada, ou o milagre relatado ter realmente ocorrido. Eu sempre escolho a opção menos milagrosa. Se a falsidade do relato for mais milagrosa do que o evento que ele descreve, então ele pode dizer que comanda meu credo ou opinião.

A hipótese de Deus


O ápice do livro talvez seja o capítulo 6, intitulado A hipótese de Deus. Sagan começa com um debate sobre as tentativas de justificar a existência de Deus, incluindo idéias hindus, porém se concentrando na tradição judaico-cristã-islâmica. Ele desnuda cada uma das justificativas. Depois segue-se uma breve avaliação dos problemas inerentes a existência de Deus, como o clássico problema da antiguidade grega que evidencia que Deus não pode ser ao mesmo tempo omnipotente, omnisciente e bondoso:
Deus deseja acabar com o mal, mas não é capaz?
Então ele não é omnipotente.
Ele é capaz, mas não deseja?
Então ele é malevolente.
Ele é capaz e também deseja?
Então ele pratica o mal?
Ele não é capaz nem deseja?
Então porque chamá-lo de Deus?

— Epicuro
A propósito desta parte do livro, há uma outra observação interessante apontada por Albert Einstein. Um Deus pessoal que intervém no universo a nosso favor discorda com o princípio básico da ciência de que há leis imutáveis que regem o comportamento do universo, leis que podem ser inferidas por meio de experimentos reprodutíveis. O eletromagnetismo macroscópico é descrito por equações as equações de Maxwell e não pela vontade de uma consciência que altera como lhe convém o comportamento da luz, da eletricidade e do magnetismo. Ou a ciência pode utilizar-se de modelos lógicos e racionais para descrever o universo sem ambiguidades ou não pode. Neste último caso, nossos modelos científicos devem estar errados.
Para encerrar o capítulo 6, Sagan faz uma pergunta legítima e simples que merece uma resposta honesta. A tradição judaico-cristã-islâmica é baseada na idéia de que algumas pessoas (entre elas, supostamente: Abraão, Moisés, Jesus e Maomé) receberam comunicação direta de Deus, sabedoria então registrada nos livros ditos sagrados. É também um fato universal que todas religiões precisam se validar de alguma forma apresentando idéias sobre como ocorrem intervenções sobrenaturais que "provam" as alegações dessas religiões (e.g. a psicografia no espiritismo ou a encarnação da pomba-gira na umbanda). Dito isto, a pergunta de Sagan é: por que Deus (ou outros deuses) não deixaram claro e evidente para todos os seres humanos sinais de Sua existência? Por exemplo, o Deus cristão bem que podia ter colocado um crucifixo maior que Júpiter em órbita ao redor do Sol. Ou ao invés de ter secretamente fornecido a Moisés os dez mandamentos no alto de uma montanha, quando ninguém estava por perto para ter certeza, poderia tê-los escrito em hebraico na superfície da Lua. É incrível como o Deus da Bíblia preocupou-se em repassar informações sobre as regras e legitimidade de escravização (e.g. Êxodo 21:2-7), o uso da pena de morte para crianças mal criadas, feiticeiros, prostitutas, ateus e homossexuais (e.g. Deuteronômio 21:18-21, Levítico 20:27, Levítico 29:1), quais vilas o exército de Israel deve invadir e destruir (Números 31:14-18), etc., todas afirmações perfeitamente passíveis de terem sido escritas por seres humanos comuns (uma análise crítica apontaria que o Velho Testamento foi mais provavelmente escrito por líderes políticos e generais de exército do que uma consciência sobrehumana), mas foi incapaz de fornecer uma única frase que seria impossível de ser entendida ou concebida por humanos na época em que as escrituras foram preparadas. Ora, Abraão e Moisés tiveram o privilégio de ver Deus eles próprios, então nada mais razoável que Deus tivesse dado a eles alguma informação que seria compreendida apenas no século 21 e que serviria da prova de sua existência. Por exemplo, ele poderia ter repassado entre os dez mandamentos: "Não ultrapassarás a velocidade da luz". Tal mandamento passaria como um enigma legítimo até o início do século 20. Com a descoberta da relatividade ficaria claro que este mandamento fora realmente comunicado a Moisés por uma consciência muito melhor informada sobre o universo do que qualquer humano daquela época poderia ser. Desta forma haveria evidências da existência de tal consciência não apenas para Moisés como para todo homem do século 21. No entanto, não há uma única mensagem matemática ou código sobre o universo escrito na Bíblia, e as poucas passagens literais sobre a planura da Terra e a origem da vida se provaram equívocas. Por que Deus não deixou prova clara de sua existência dessa forma ou por que ele cometeu erros tão grosseiros sobre a organização do cosmos?
Eu gostaria de enfatizar que o argumento precedente se aplica não apenas ao Deus das escrituras sagradas, mas igualmente a alegações sobre a existência de espíritos e outras formas sobrenaturais. Há uma ampla gama de idéias que parecem apelar para nós como evidências das religiões mas que são construídas de forma a serem deliberadamente impossíveis de serem experimentadas por todos os humanos. Portanto é legítimo e bastante honesto perguntar: se esses entes tem os poderes alegados, a importância alegada para a organização da vida humana, por que se provam escusos para quase todos nós? Por que não deixam claro a sua existência?

Mais um blog da internet

Bom, estou criando mais um blog pessoal. Aqui pretendo falar de física, às vezes outros tópicos de ciência, e debate racional sobre religião, misticismo e pseudociência. Pelo que vi ainda há poucos blogs em português sobre física e ainda menos sobre a interface com as crenças e mitos.

Espero criar um espaço para compreensão pública da física e do pensamento científico.

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