César Lattes e a consolidação da ciência nacional

Será possível exagerar o legado de Lattes a ciência brasileira? Provavelmente não. Cesare Mansueto Giulio Lattes nasceu a 11 de julho de 1924 em Curitiba, de descendência italiana judia. Sua família transferiu-se depois para São Paulo onde fez seus estudos do ginásio. Quando começou a assistir aulas de física, mostrou grande facilidade com a matéria e decidiu ser professor da disciplina. Seu pai na época era responsável pelos vencimentos da missão estrangeira que fundou a FFCL USP, e pôs então seu filho em contato com Gleb Wataghin, que acabou por apoiar a escolha do jovem. Lattes ingressou na universidade em 41, após primeiro lugar no vestibular da FFCL, e em 1943 com apenas 19 anos se formou bacharel em Física. Da sua formação teve forte influência Wataghin, Marcelo Damy, Giuseppe Occhialini e Mário Schenberg que o convenceram de seguir carreira em pesquisa. Com Schenberg, Lattes realizou um trabalho sobre o campo de radiação do elétron segundo a eletrodinâmica quântica [1], chegando a uma expressão para a radiação do momento de dipolo com 27 termos. Mais tarde, Lattes lembraria este trabalho como o momento de sua decisão definitiva pela física experimental! grin

No laboratório de Wataghin, Lattes construiu câmeras de Wilson para o estudo de raios cósmicos junto com Hugo Camerini e André Wataghin (filho de Gleb) com dinheiro próprio, usando tecnologia recém desenvolvida por Damy e com base em métodos desenvolvidos por Occhialini — uma versão aperfeiçoada do método experimental de Occhialini e P. M. S. Blacket que possibilitou a elucidação do processo de criação do pósitron. Com esse instrumento eles pretendiam estudar a componente “mole” da radiação cósmica (quer dizer, os raios cósmicos com baixo poder de penetração na matéria, ou em outras palavras: de baixa energia).

Occhialini transferiu-se no final de 44 para Inglaterra onde passou a integrar o grupo de física nuclear na Universidade de Bristol liderado por Cecil Powell, que na época estudava espalhamento nêutron-próton na escala de 10 MeV. Os resultados de Lattes com a câmera que desenvolvera no Brasil levaram Occhialini a solicitar uma bolsa para a sua inclusão no grupo de Bristol. Assim foi, e em 1946 Lattes era Research Associate do laboratório. Lattes e Occhialini novamente juntos não estavam dispostos a realizar trabalhos em espalhamento de nêutrons, e logo inseriram a pesquisa de raios cósmicos em Bristol. Nos anos de 46/47 o laboratório era formado por cerca de 20 pessoas (incluindo Lattes).





Laboratório de pesquisa nuclear da Universidade de Bristol, 1946. Lattes está no meio da segunda fileira (de baixo para cima).

O grupo começou a utilizar chapas fotográficas, então fabricadas pela empresa Ilford. Nesta época, havia forte interesse em estudar a natureza do que se chamava méson, partícula proposta por Hideki Yukawa para ser intermediadora da força nuclear. Aparentemente, ela havia sido descoberta por Carl Aderson e Seth Neddermeyer em 1936 [2], mas não apresentava todas as características teoricamente especuladas. No experimento de Occhialini e Lattes, duas modificações cruciais nas chapas fotográficas da Illford foram propostas: 1) Occhialini solicitou aumento expressivo da presença de prata, o que possibilitou maior seção de choque de interação com mésons e por conseguinte maior número de eventos, 2) Lattes descobriu que bórax (substância que contém boro) ao ser adicionado às chapas aumentava substancialmente o tempo de exposição, acrescentando portanto ainda mais eventos.

Occhialini e Powell levaram algumas dessas chapas modificadas ao Puc du Midi nos Pirineus e descobriram a possível presença de uma partícula nuclearmente ativa, diferente do méson Anderson-Neddermeyer, mas não foram capazes de determinar sua massa [3]. Donald H. Perkins realizava nessa época experiências similares, levando suas chapas a altas altitudes (~ 30.000 m) com aviões [4], mas como não detinha as mesmas técnicas das chapas do grupo de Bristol, registrou um número bem menor de eventos. Logo em seguida Lattes, Occhialini, H. Muirhead e Powell causaram grande confusão no mundo ao descobrirem que aparentemente havia dois mésons e que um podia se desintegrar no outro [5]. Ainda não podiam afirmar com certeza, pois não era possível medir as massas.

O problema da determinação da massa foi resolvido por Lattes, P. Fowler e P. Cüer [6]. Depois de uma pesquisa no departamento de geografia de Bristol, Lattes sugeriu realizar novas medidas não no Puc di Midi, a 2,8 mil metros de altitude, mas em Chacaltaya, na Bolívia, a 5,5 mil metros, o que possibilitaria melhor estatística — 100 mil vezes mais eventos! A escolha se deveu ao “fácil” acesso a região. Lattes foi sozinho e depois de uma viagem homérica, conseguiu chegar ao pico. Expôs as chapas e revelou uma delas um mês depois. Ao analisar o material no microscópio, identificou com sucesso dois eventos claros de um méson decaindo em outro. Telegrafou para Powell contando as novidades, e este solicitou sua volta.
De volta a Bristol, Lattes, Occhialini e Powell realizaram o trabalho de análise do material, revelando claramente que existiam dois mésons, um que hoje conhecemos por μ [7], observado por Anderson e Neddermeyer, e que definitivamente não podia ser o méson de Yukawa devido a sua fraca interação nuclear; e outro, que correspondia a massa do modelo de Yukawa, o π [8]. Lattes tinha 23 anos de idade. A repercussão da descoberta foi imediata. Lattes deu uma série de palestras pela Europa sobre os resultados, incluindo no Instituto de Niels Bohr na Dinamarca, a convite do próprio Bohr. Em seguida, Lattes foi para o Lawrence Berkeley National Laboratory, na Califórnia, onde equipou o recente acelerador de partículas cíclotron com as técnicas de detecção adequadas para o píon, realizando assim a primeira produção artificial do π da história [9]. O prestígio imediato de Lattes foi espetacular: primeira manchete nos jornais brasileiros, capa da revista Life, matéria na revista Times. Yukawa recebeu o Prêmio Nobel pelo seu modelo (1949) e Powell sozinho pelas descobertas de Occhialini e Lattes (1950). Das entrevistas concedidas por Lattes não é possível identificar nenhum ressentimento por este fato. Ele até brinca: “na verdade, Bohr escreveu uma carta que será aberta em 2006 dizendo porque eu não recebi o prêmio!”.

A preocupação de Lattes não era o Nobel. Deixe-me destacar um trecho de carta enviada a seu amigo José Leite Lopes, datada de 12 de agosto de 1946:

“(...) Estou perfeitamente disposto a ir trabalhar aí em condições muito menos favoráveis do que aqui (...) porque acho que é muito mais interessante e difícil formar uma boa escola num ambiente precário do que ganhar o Prêmio Nobel trabalhando no melhor laboratório do mundo. A satisfação HUMANA [grifo dele] que a gente sente ao verificar que está sendo útil para que outros também tenham oportunidade de pesquisar é muito melhor do que a que se obtém de uma pesquisa (...) sob ótimas condições de trabalho.”

Em Berkeley, ele conheceu Nelson Lins de Barros, irmão de Álvaro Lins de Barros, um braço forte do governo de Getúlio Vargas. Expôs a sua idéia a Nelson da criação de um centro de excelência no Brasil para pesquisa em física e de uma política nacional para desenvolver ciência, e Nelson então o pôs em contato com Álvaro, que o levou pessoalmente a reuniões com Getúlio. A repercussão na mídia de seus trabalhos foi o fator fundamental que possibilitou a criação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) (onde Lattes foi o primeiro diretor) e do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq) (onde Lattes foi conselheiro científico) por decreto do presidente. cool

O valor do CNPq para o desenvolvimento da universidade como centro de pesquisa no Brasil não precisa de apresentação. O CBPF que foi construído do zero absoluto tornou-se um dos mais importantes centros de física do país e sua atuação junto a Faculdade Nacional de Filosofia (onde Lattes efetivou-se professor titular) formou Jorge André Swieca, Herch Moysés Nussenzveig, Mario Novello, Nicim Zagury, Sérgio Joffily e de maior interação com Lattes, Elisa Frota-Pessoa. O centro iniciou cooperações internacionais (Brasil-Japão e o Centro Latino Americano de Física, CBPF-CERN, CBPF-Fermilab, Projeto Pierre Auger, e tantos outros), atraiu ao Brasil pesquisadores estrangeiros como Guido Beck, Juan J. Giambiagi, Bert Schröer, Occhialini; e alojou grandes pesquisadores nacionais como Jayme Tiomno, Schenberg, Constantino Tsallis e A. M. Ozório de Almeida.

Em 1948, Lattes recebeu o título de doutor honoris causa pelo Instituto de Física da USP. Em 1955 foi convidado para trabalhar na Universidade de Chicago para assumir o grupo deixado pelo falecido Enrico Fermi, o que recusou.

Em 1967, recebeu convite que aceitou para tornar-se professor titular da então em criação Unicamp, participando assim da fundação do Instituto de Física “Gleb Wataghin” (em homenagem ao mestre), onde estabeleceu o grupo de altas energias e o laboratório de raios cósmicos. Mais uma vez, Lattes atuou pela criação de um centro de pesquisa, cujo valor nacional e internacional é bem conhecido. Após aposentar-se na Unicamp, ainda colaborou com a criação de um grupo de pesquisa em Física em Mato Grosso do Sul.

Lattes manteve intensa produção científica até a década de 90. Estabeleceu em Chacaltaya um laboratório de raios cósmicos o qual foi apoiado pelo CBPF, pelo Japão e também pela universidade local Universidad Mayor de San Adrés. Neste laboratório, formou pessoas que hoje integram centros experimentais no Brasil e no exterior, dos quais destacou-se Roberto Salmeron (que depois foi para o CERN e atualmente é emérito da École Polythecnique de Paris). Dos trabalhos que realizou lá, destacou-se estudos da interação hadrônica [10] que culminaram com a descoberta das chamadas “bolas de fogo” na produção múltipla de píons.

Lattes tornou-se emérito da UFRJ, CBPF e Unicamp, e morou em Campinas até falecer em março de 2005, aos 80 anos. Entre os prêmios que recebeu, incluem-se: Ernesto Fonseca Costa (CNPq, 1953), Einstein (Acad. Bras. de Ciências, 1950), Bernardo Houssay (Organização dos Estados Americanos, 1978) e o Prêmio de Física da Academia de Ciências do Terceiro Mundo (1988).


Notas e referências
  1. Lattes, C. G. M., Schönberg, M. Schützer, W. Anais Acad. Bras. de Ciências 19, 13 (1947).
  2. Anderson, C., Neddermeyer, S. Phys. Rev. 50, 263 (1936).
  3. Occhialini, G. P. S., Powell, C. F. Nature 159, 186 (1947).
  4. Perkins, D. H. Nature 159, 126 (1947).
  5. Lattes, C. M. G., Muirhead, H., Occhialini, G. P. S., Powell, C. F. Nature 159, 694 (1947).
  6. Lattes, C. M. G., Fowler, P., Cüer, P. Nature 159, 301 (1947).
  7. Na classificação contemporânea, o μ é um lépton (da mesma natureza que o elétron), e não um méson, termo reservado para partículas formadas por um par quark-antiquark, das quais o π é um exemplo (e o mais leve). Naquela época, “méson” queria dizer mais pesado que o elétron, porém mais leve que o próton.
  8. Lattes, C. M. G., Occhialini, G. P. S., Powell, C. F. Nature 160, 453 (1947); Nature 160, 486 (1947); Proc. Roy. Soc. 61, 173 (1948).
  9. Lattes, C. M. G.. Fujimoto, Y., Hasegawa, S. Phys. Rep. 65, 152 (1980).

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