Bons tempos

Da esquerda para direita, de cima para baixo: César Lattes, Hideki Yukawa, Walter Schüzter, Hervásio de Carvalho, José Leite Lopes, Jayme Tiomno. Esta foto foi tirada em Princeton, provavelmente no Instituto de Estudos Avançados (eu acho que em frente ao Fuld Hall).

Eu tenho esta foto em algum dos meus livros, mas ela está também na Internet.

César Lattes e a consolidação da ciência nacional

Será possível exagerar o legado de Lattes a ciência brasileira? Provavelmente não. Cesare Mansueto Giulio Lattes nasceu a 11 de julho de 1924 em Curitiba, de descendência italiana judia. Sua família transferiu-se depois para São Paulo onde fez seus estudos do ginásio. Quando começou a assistir aulas de física, mostrou grande facilidade com a matéria e decidiu ser professor da disciplina. Seu pai na época era responsável pelos vencimentos da missão estrangeira que fundou a FFCL USP, e pôs então seu filho em contato com Gleb Wataghin, que acabou por apoiar a escolha do jovem. Lattes ingressou na universidade em 41, após primeiro lugar no vestibular da FFCL, e em 1943 com apenas 19 anos se formou bacharel em Física. Da sua formação teve forte influência Wataghin, Marcelo Damy, Giuseppe Occhialini e Mário Schenberg que o convenceram de seguir carreira em pesquisa. Com Schenberg, Lattes realizou um trabalho sobre o campo de radiação do elétron segundo a eletrodinâmica quântica [1], chegando a uma expressão para a radiação do momento de dipolo com 27 termos. Mais tarde, Lattes lembraria este trabalho como o momento de sua decisão definitiva pela física experimental! grin

No laboratório de Wataghin, Lattes construiu câmeras de Wilson para o estudo de raios cósmicos junto com Hugo Camerini e André Wataghin (filho de Gleb) com dinheiro próprio, usando tecnologia recém desenvolvida por Damy e com base em métodos desenvolvidos por Occhialini — uma versão aperfeiçoada do método experimental de Occhialini e P. M. S. Blacket que possibilitou a elucidação do processo de criação do pósitron. Com esse instrumento eles pretendiam estudar a componente “mole” da radiação cósmica (quer dizer, os raios cósmicos com baixo poder de penetração na matéria, ou em outras palavras: de baixa energia).

Occhialini transferiu-se no final de 44 para Inglaterra onde passou a integrar o grupo de física nuclear na Universidade de Bristol liderado por Cecil Powell, que na época estudava espalhamento nêutron-próton na escala de 10 MeV. Os resultados de Lattes com a câmera que desenvolvera no Brasil levaram Occhialini a solicitar uma bolsa para a sua inclusão no grupo de Bristol. Assim foi, e em 1946 Lattes era Research Associate do laboratório. Lattes e Occhialini novamente juntos não estavam dispostos a realizar trabalhos em espalhamento de nêutrons, e logo inseriram a pesquisa de raios cósmicos em Bristol. Nos anos de 46/47 o laboratório era formado por cerca de 20 pessoas (incluindo Lattes).





Laboratório de pesquisa nuclear da Universidade de Bristol, 1946. Lattes está no meio da segunda fileira (de baixo para cima).

O grupo começou a utilizar chapas fotográficas, então fabricadas pela empresa Ilford. Nesta época, havia forte interesse em estudar a natureza do que se chamava méson, partícula proposta por Hideki Yukawa para ser intermediadora da força nuclear. Aparentemente, ela havia sido descoberta por Carl Aderson e Seth Neddermeyer em 1936 [2], mas não apresentava todas as características teoricamente especuladas. No experimento de Occhialini e Lattes, duas modificações cruciais nas chapas fotográficas da Illford foram propostas: 1) Occhialini solicitou aumento expressivo da presença de prata, o que possibilitou maior seção de choque de interação com mésons e por conseguinte maior número de eventos, 2) Lattes descobriu que bórax (substância que contém boro) ao ser adicionado às chapas aumentava substancialmente o tempo de exposição, acrescentando portanto ainda mais eventos.

Occhialini e Powell levaram algumas dessas chapas modificadas ao Puc du Midi nos Pirineus e descobriram a possível presença de uma partícula nuclearmente ativa, diferente do méson Anderson-Neddermeyer, mas não foram capazes de determinar sua massa [3]. Donald H. Perkins realizava nessa época experiências similares, levando suas chapas a altas altitudes (~ 30.000 m) com aviões [4], mas como não detinha as mesmas técnicas das chapas do grupo de Bristol, registrou um número bem menor de eventos. Logo em seguida Lattes, Occhialini, H. Muirhead e Powell causaram grande confusão no mundo ao descobrirem que aparentemente havia dois mésons e que um podia se desintegrar no outro [5]. Ainda não podiam afirmar com certeza, pois não era possível medir as massas.

O problema da determinação da massa foi resolvido por Lattes, P. Fowler e P. Cüer [6]. Depois de uma pesquisa no departamento de geografia de Bristol, Lattes sugeriu realizar novas medidas não no Puc di Midi, a 2,8 mil metros de altitude, mas em Chacaltaya, na Bolívia, a 5,5 mil metros, o que possibilitaria melhor estatística — 100 mil vezes mais eventos! A escolha se deveu ao “fácil” acesso a região. Lattes foi sozinho e depois de uma viagem homérica, conseguiu chegar ao pico. Expôs as chapas e revelou uma delas um mês depois. Ao analisar o material no microscópio, identificou com sucesso dois eventos claros de um méson decaindo em outro. Telegrafou para Powell contando as novidades, e este solicitou sua volta.
De volta a Bristol, Lattes, Occhialini e Powell realizaram o trabalho de análise do material, revelando claramente que existiam dois mésons, um que hoje conhecemos por μ [7], observado por Anderson e Neddermeyer, e que definitivamente não podia ser o méson de Yukawa devido a sua fraca interação nuclear; e outro, que correspondia a massa do modelo de Yukawa, o π [8]. Lattes tinha 23 anos de idade. A repercussão da descoberta foi imediata. Lattes deu uma série de palestras pela Europa sobre os resultados, incluindo no Instituto de Niels Bohr na Dinamarca, a convite do próprio Bohr. Em seguida, Lattes foi para o Lawrence Berkeley National Laboratory, na Califórnia, onde equipou o recente acelerador de partículas cíclotron com as técnicas de detecção adequadas para o píon, realizando assim a primeira produção artificial do π da história [9]. O prestígio imediato de Lattes foi espetacular: primeira manchete nos jornais brasileiros, capa da revista Life, matéria na revista Times. Yukawa recebeu o Prêmio Nobel pelo seu modelo (1949) e Powell sozinho pelas descobertas de Occhialini e Lattes (1950). Das entrevistas concedidas por Lattes não é possível identificar nenhum ressentimento por este fato. Ele até brinca: “na verdade, Bohr escreveu uma carta que será aberta em 2006 dizendo porque eu não recebi o prêmio!”.

A preocupação de Lattes não era o Nobel. Deixe-me destacar um trecho de carta enviada a seu amigo José Leite Lopes, datada de 12 de agosto de 1946:

“(...) Estou perfeitamente disposto a ir trabalhar aí em condições muito menos favoráveis do que aqui (...) porque acho que é muito mais interessante e difícil formar uma boa escola num ambiente precário do que ganhar o Prêmio Nobel trabalhando no melhor laboratório do mundo. A satisfação HUMANA [grifo dele] que a gente sente ao verificar que está sendo útil para que outros também tenham oportunidade de pesquisar é muito melhor do que a que se obtém de uma pesquisa (...) sob ótimas condições de trabalho.”

Em Berkeley, ele conheceu Nelson Lins de Barros, irmão de Álvaro Lins de Barros, um braço forte do governo de Getúlio Vargas. Expôs a sua idéia a Nelson da criação de um centro de excelência no Brasil para pesquisa em física e de uma política nacional para desenvolver ciência, e Nelson então o pôs em contato com Álvaro, que o levou pessoalmente a reuniões com Getúlio. A repercussão na mídia de seus trabalhos foi o fator fundamental que possibilitou a criação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) (onde Lattes foi o primeiro diretor) e do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq) (onde Lattes foi conselheiro científico) por decreto do presidente. cool

O valor do CNPq para o desenvolvimento da universidade como centro de pesquisa no Brasil não precisa de apresentação. O CBPF que foi construído do zero absoluto tornou-se um dos mais importantes centros de física do país e sua atuação junto a Faculdade Nacional de Filosofia (onde Lattes efetivou-se professor titular) formou Jorge André Swieca, Herch Moysés Nussenzveig, Mario Novello, Nicim Zagury, Sérgio Joffily e de maior interação com Lattes, Elisa Frota-Pessoa. O centro iniciou cooperações internacionais (Brasil-Japão e o Centro Latino Americano de Física, CBPF-CERN, CBPF-Fermilab, Projeto Pierre Auger, e tantos outros), atraiu ao Brasil pesquisadores estrangeiros como Guido Beck, Juan J. Giambiagi, Bert Schröer, Occhialini; e alojou grandes pesquisadores nacionais como Jayme Tiomno, Schenberg, Constantino Tsallis e A. M. Ozório de Almeida.

Em 1948, Lattes recebeu o título de doutor honoris causa pelo Instituto de Física da USP. Em 1955 foi convidado para trabalhar na Universidade de Chicago para assumir o grupo deixado pelo falecido Enrico Fermi, o que recusou.

Em 1967, recebeu convite que aceitou para tornar-se professor titular da então em criação Unicamp, participando assim da fundação do Instituto de Física “Gleb Wataghin” (em homenagem ao mestre), onde estabeleceu o grupo de altas energias e o laboratório de raios cósmicos. Mais uma vez, Lattes atuou pela criação de um centro de pesquisa, cujo valor nacional e internacional é bem conhecido. Após aposentar-se na Unicamp, ainda colaborou com a criação de um grupo de pesquisa em Física em Mato Grosso do Sul.

Lattes manteve intensa produção científica até a década de 90. Estabeleceu em Chacaltaya um laboratório de raios cósmicos o qual foi apoiado pelo CBPF, pelo Japão e também pela universidade local Universidad Mayor de San Adrés. Neste laboratório, formou pessoas que hoje integram centros experimentais no Brasil e no exterior, dos quais destacou-se Roberto Salmeron (que depois foi para o CERN e atualmente é emérito da École Polythecnique de Paris). Dos trabalhos que realizou lá, destacou-se estudos da interação hadrônica [10] que culminaram com a descoberta das chamadas “bolas de fogo” na produção múltipla de píons.

Lattes tornou-se emérito da UFRJ, CBPF e Unicamp, e morou em Campinas até falecer em março de 2005, aos 80 anos. Entre os prêmios que recebeu, incluem-se: Ernesto Fonseca Costa (CNPq, 1953), Einstein (Acad. Bras. de Ciências, 1950), Bernardo Houssay (Organização dos Estados Americanos, 1978) e o Prêmio de Física da Academia de Ciências do Terceiro Mundo (1988).


Notas e referências
  1. Lattes, C. G. M., Schönberg, M. Schützer, W. Anais Acad. Bras. de Ciências 19, 13 (1947).
  2. Anderson, C., Neddermeyer, S. Phys. Rev. 50, 263 (1936).
  3. Occhialini, G. P. S., Powell, C. F. Nature 159, 186 (1947).
  4. Perkins, D. H. Nature 159, 126 (1947).
  5. Lattes, C. M. G., Muirhead, H., Occhialini, G. P. S., Powell, C. F. Nature 159, 694 (1947).
  6. Lattes, C. M. G., Fowler, P., Cüer, P. Nature 159, 301 (1947).
  7. Na classificação contemporânea, o μ é um lépton (da mesma natureza que o elétron), e não um méson, termo reservado para partículas formadas por um par quark-antiquark, das quais o π é um exemplo (e o mais leve). Naquela época, “méson” queria dizer mais pesado que o elétron, porém mais leve que o próton.
  8. Lattes, C. M. G., Occhialini, G. P. S., Powell, C. F. Nature 160, 453 (1947); Nature 160, 486 (1947); Proc. Roy. Soc. 61, 173 (1948).
  9. Lattes, C. M. G.. Fujimoto, Y., Hasegawa, S. Phys. Rep. 65, 152 (1980).

30 Anos de Física de Partículas 2

Continuando o assunto do último post...

A assimetria matéria/antimatéria

Todos os processos da eletrodinâmica e a força nuclear forte observados em laboratório acontecem com a mesma probabilidade para duas reações que diferem por uma troca de todas as partículas por antipartículas. Então, por exemplo, a probabilidade de um fóton ser defletido por um elétron (efeito Compton) é a mesma que um fóton ser defletido por um pósitron.
Não obstante, é observado astronomicamente que o universo é dominado por elétrons, e não é uma mistura 50%-50% de elétrons-pósitrons. Isso só é possível se em algum estágio do Big Bang houver mais elétrons que pósitrons.
Se imaginarmos que estes elétrons e pósitrons vieram de algum processo físico, como é possível que no Big Bang uma das partículas (o elétron) tenha sido produzida em maior quantidade? A única forma é se as leis da física favorecerem a produção de matéria no lugar da antimatéria.
Até 1964, as leis da física pareciam perfeitamente simétricas em matéria/antimatéria. Naquele ano, porém, foi confirmado experimentalmente por James Cronin e Val Fitch que a força nuclear fraca possui uma assimetria matéria-antimatéria na interação entre os quarks. A assimetria é incorporada na física de partículas através do fato de que cada quark de massa definida, digamos o up quark, não interage sozinho numa reação nuclear fraca, mas sempre numa mistura com os outros quarks de mesma carga elétrica.
Não obstante, estudos na cosmologia apontaram que a assimetria matéria-antimatéria dos quarks não é grande o suficiente para explicar completamente a assimetria da matéria-antimatéria no universo. Há algo faltando [1].

Por volta de 1970, Raymond Davis Jr. e John Bahcall começaram a encontrar evidências de que os neutrinos possuiam massa, seguindo idéias anteriormente propostas em 1968 por Bruno Pontecorvo. No início dos anos 90, a colaboração do experimento Kamiokande/SuperKamiokande fez medidas independentes do experimento de Davis que confirmavam a existência de massa para os neutrinos [2]. Os dois experimentos receberam o Prêmio Nobel em 2002.

A descoberta da massa dos neutrinos abriu uma nova porta no problema da assimetria da matéria/antimatéria: se os neutrions de massa bem definida entrarem numa mistura ao interagir com o W e o Z, então dependendo da natureza dessa mistura, pode haver uma violação da simetria matéria-antimatéria (igual como acontece com os quarks). Ainda não há resultados experimentais que testam essa hipótese, mas já há modelos teóricos indicativos que uma assimetria para os neutrinos poderia ser o que faltava para explicar a diferença entre matéria-antimatéria observada no universo! Ainda mais interessante, modelos de unificação da força nuclear forte com a eletrofraca (as teorias de GUT) predizem uma massa para o neutrino e violação da simetria matéria-antimatéria de forma mais ou menos automática.
No presente momento, há vários experimentos designados a investigar a natureza do neutrino e suas interações com a matéria, entre eles: BooNE e MINOS no Fermilab, KamLAND no Japão e o IceCube na Antártida. Estes experimentos poderão determinar a natureza da massa dos neutrinos e se estes participam ou não da assimetria matéria-antimatéria.
O neutrino, que foi proposto em 1929 para preservar a conservação da energia, pode acabar por desempenhar um papel fundamental no Universo e ainda permitir avaliar se há realmente uma unificação das forças fundamentais.

O Problema CP Forte e a Matéria Escura

A assimetria da matéria-antimatéria na física teórica de partículas é denominada de violação CP. Se partimos do pressuposto que as simetrias são suficientes para estabelecer a forma das leis da física, então a simetria da força forte deveria implicar na existência de violação CP em processos nucleares fortes. Em outras palavras, a simetria da QCD não impede a existência de violação CP. Entretanto, tal violação nas interações fortes não é observada experimentalmente. É possível traduzir isso em termos de um parâmetro, genericamente chamado de , que deve ser menor que uma parte em um bilhão. Dessa forma, fica a pergunta: por que a violação CP forte é tão pequena? O Modelo Padrão não tem uma explicação! Talvez algo mais fundamental esteja em jogo.
Um mecanismo para explicar o valor tão pequeno do parâmetro surgiu em 1977 num estudo sobre instantons realizado por R. Peccei e Helen Quinn [3]. O mecanismo de Peccei-Quinn leva a existência de uma nova partícula escalar eletricamente neutra, chamada de axion. Buscas do axion até agora deram sinal negativo, o que em si é consistente com o modelo teórico que prevê um acoplamento muito fraco. Mas nem tudo está perdido para detectar os áxions: um axion livre no universo decairia para dois fótons apenas depois de um longo tempo, e isso o faz um candidato natural para a matéria escura. Há experimentos — em andamento e sendo projetados — que buscam determinar se o axion faz parte da massa das galáxias. Ainda não existe nenhuma evidência conclusiva de que o mecanismo de Peccei-Quinn esteja em ação na Natureza.
Há modelos de física de partículas com supersimetria que poderiam ser descobertos no LHC que resolvem o problema sem a exigência de um axion [4]. Outra alternativa é pressupor que a massa do quark na ausência de interações é zero, mas que as interações dos quarks com forças ainda não descobertas gerariam uma massa efetiva muito pequena [5]. Nesse caso, a origem do valor de dependeria da física de uma teoria de unficação, supercordas, ou algo do tipo.

Mistérios das massas dos quarks

O Modelo Padrão não prevê nenhum valor específico para massa dos férmions, mas há pelo menos duas características do espectro das partículas que são ainda mais curiosas. A primeira é a seguinte: os quarks de carga positiva interagem todos do mesmo modo com as forças fundamentais. Em outras palavras, as "cargas" dessas partículas são todas idênticas. O mesmo vale para os quarks de carga negativa. É natural que os quarks de carga positiva tenham uma massa diferente dos de carga negativa, uma vez que o valor absoluto da carga não é a mesmo: a carga elétrica do up, charm e top (u,c,t) é +2/3, do down, strange e bottom (d,s,b) é -1/3; então a contribuição da nuvem de fótons virtuais para a massa dos quarks de cargas opostas é diferente, mas entre quarks de mesma carga a contribuição é idêntica. Uma vez que os quarks interagem todos com a mesma intensidade com os glúons, a diferença na massa dos quarks provenientes da contribuição de partículas virtuais poderia vir da diferença das cargas elétricas.
Os quarks de carga negativa s,b são mais leves que os quarks correspondentes de carga positiva c,t. Porém, para os quarks u,d a relação é a inversa! O quark d é mais pesado que o u. Como isso é possível, se a diferença de massa entre os pares (u,d), (c,s) e (t,b) deveria ser devido a carga elétrica? Isso seria uma curiosidade tola se não fosse o fato de que essa inversão da diferença de massa do par (u,d) é responsável pela estabilidade do próton! Se a diferença das massas dos quarks u,d obedecesse o mesmo padrão dos demais quarks, seria o próton que decairia para o nêutron, e o universo seria um mundo muito chato sem nenhum átomo. Até o momento, não há nenhuma explicação para essa diferença de massa entre gerações.
Outro fato curioso da massa dos quarks é o valor da massa do top. Inicialmente, imaginava-se que o top deveria ter uma massa ~ 80 GeV. Foi uma surpresa quando as colaborações CDF e D0 do Fermilab apontaram em 1995 que o valor é 172±3 GeV [6]. O aspecto curioso desse número é o seguinte. Se tivéssemos um medidor do valor do campo do Higgs no vácuo (este valor existe tanto quanto o valor do campo elétrico num determinado ponto), obteríamos 247 GeV, que quando dividido pela raiz de dois é o valor da massa do top! Será que o top desempenha algum papel especial na unificação da força eletromagnética com a força nuclear fraca que explicaria esta coincidência? Há uma versão da Technicolor (lembra do último post?) onde o top sofre interações que fazem com que ele forme uma partícula tipo-techni-hadrônica, formada apenas de top e techni-gluons, e interage de tal forma a substituir o bóson de Higgs. Essa idéia é chamada de Topcolor, ou Technicolor auxiliada pelo top. A Topcolor pode ser diretamente observada (ou descartada) no LHC, e tem a vantagem de matar dois coelhos com uma cajadada só: a coincidência entre o valor da massa do top e o valor do campo de Higgs e o problema da hierarquia.

Notas

  1. Dois artigos populares que fala mais sobre isso: no CERN Courier e na Physics World.
  2. Os resultados iniciais de Davis datam de 1970, mas somente em 1998, com as medidas independentes do SuperKamiokande, que a comunidade se sentiu segura para admitir que o neutrino tem massa.
  3. R.D. Peccei, Helen R. Quinn, Phys. Rev. D 16:1791-1797 (1977); Phys. Rev. Lett. 38:1440-1443 (1977). [SPIRES]
  4. K.S. Babu, Rabindra N. Mohapatra, Phys. Rev. D 41:1286 (1990). [SPIRES]; Rabindra N. Mohapatra, Andrija Rasin, Phys. Rev. Lett. 76:3490 (1996). [SPIRES]
  5. Tecnicamente: o termo de massa na Lagrangeana que descreve quarks a altas energias (digamos > 200 GeV) é zero, mas a baixas energias estas interações ainda não descobertas geram uma massa efetiva muito pequena.
  6. CDF Collbaration, Phys. Rev. Lett. 74:2626 (1995) [SPIRES]; D0 Collaboration, Phys. Rev. Lett. 74:2632 (1995) [SPIRES].

A Física de partícula dos últimos 30 anos

Uma das alegações mais comuns de alguns livros de divulgação que tratam sobre supercordas é a de que a física de partículas esteve mais ou menos congelada do ponto de vista de novas idéias teóricas nos últimos 30 anos. Woit, Greene, Kaku são exemplos de textos com essa alegação: após a descoberta da unificação eletrofraca e dos métodos de cálculo nas chamadas teorias de calibre que aconteceram nos anos 60 e 70, pelos últimos 30 anos a física de partículas apenas viu confirmação do cenário teórico geral estabelecido, sem necessidade de novas idéias.

Isso é verdade em parte, mas não é toda a história. tongue Como eu quero mostrar neste e nos próximos posts, a física de partículas nos últimos 30 anos foi um terreno muito fértil para problemas desafiadores e grandes dificuldades teóricas, que acabaram por desenvolver uma série de novas e importantes técnicas que mudaram drasticamente a visão da física fundamental que se tinha nos anos 70. Algumas dessas idéias ainda serão testadas no LHC, e dada a situação extremamente obscura da nossa compreensão de alguns problemas da física de partículas, é bem provável que algo completamente inesperado possa surgir nos próximos anos, criando ainda mais excitação para novas idéias. grin

A descoberta das teorias efetivas


Na década de 40, Freeman Dyson descobriu que teorias de física de partículas com certas características tinham uma receita simples que permitia calcular qualquer fenômeno físico e obter uma resposta finita. As teorias que satisfazem os critérios de Dyson são chamadas de teorias renormalizáveis. Outras teorias pareciam simplesmente prever que qualquer processo físico teria probabilidade infinita de ocorrer, o que não faz sentido uma vez que nada pode ter mais que 100% de probabilidade.

O problema técnico resolvido por Dyson foi o principal motivador do desenvolvimento da teoria eletrofraca e da cromodinâmica quântica: ambas são teorias renormalizáveis. No entanto, no final dos anos 70, o gênio Steven Weinberg mostrou como fazer cálculos com qualquer teoria em física de partículas. Ficou claro que as teorias renormalizáveis são apenas um caso particular de teorias mais gerais, e que correspondem apenas a uma primeira aproximação. As teorias mais gerais são hoje genericamente chamadas de teorias efetivas (antigamente chamadas de não-renormalizáveis).

Esta descoberta impulsionou uma série de desenvolvimentos muito importantes, em especial para a física da força nuclear forte, pois é impossível usar a QCD diretamente para estudar hádrons em baixas energias. Porém, é possível escrever teorias efetivas que descrevem hádrons mas que são intimamente relacionadas com a QCD. A relação das teorais efetivas de hádrons com a QCD é a mesma entre as teorias que descrevem a magnetização dos materiais com a física atômica: ao invés de começar do problema do movimento de N átomos, ignora-se todos os graus de liberdade dos átomos, exceto o momento magnético, e constrói-se então um modelo para a interação de N momentos magnéticos. Desse modo, foi possível durante os anos 90 fazer cálculos analíticos de propriedades dos hádrons partindo da QCD. Em especial, Mark Wise, Mikhail Voloshin e Nathan Isgur descobriram no final de 1989 uma nova simetria das interações fortes, e desenvolveram uma teoria efetiva com base nesta simetria que permitiu calcular analiticamente o comportamento dos mésons que contém quarks charmed e bottom[1]. Esta teoria é conhecida como a teoria efetiva de quarks pesados (HQEFT), e antes dela pensava-se que somente cálculos numéricos complicados da QCD poderiam providenciar previsões para as propriedades dos mésons com quarks charmed e bottom. Os três receberam em 2001 o Prêmio J. J. Sakurai de Física Teórica da American Physical Society pelo desenvolvimento da teoria e suas conseqüências.

O problema da hierarquia


Um dos componentes fundamentais do modelo de unificação eletrofraca da física de partículas é a existência do chamado bóson de Higgs. No entanto, em 1979, Kenneth Wilson mostrou que a existência do bóson de Higgs constitui automaticamente um problema[2], hoje conhecido como o problema da hierarquia.
Wilson percebeu que a contribuição das partículas virtuais para a massa do bóson de Higgs é da ordem de 1019 GeV [3]. No entanto, a massa do bóson de Higgs é experimentalmente vinculada para ser da ordem de 100 GeV. A única solução é ajustar um parâmetro da teoria em mais ou menos 17 algarismos significativos para ser idêntico a contribuição das partículas virtuais:

Massa do Higgs = (parâmetro da teoria) + (partículas virtuais)

Qual a razão do parâmetro da teoria provocar um cancelamento tão perfeito da contribuição das partículas virtuais? O Modelo Padrão não tem uma resposta para essa pergunta!
Isto levou logo em 1979 Leonard Susskind [2] a propor uma alternativa a existência do bóson de Higgs, a teoria conhecida por Technicolor, que prevê a existência de uma nova força forte na Natureza. Mais tarde foi percebido que a supersimetria também resolve o problema da hierarquia, pois a contribuição de cada partícula virtual do Modelo Padrão para massa do Higgs é cancelada por uma partícula de spin diferente.
No entanto, tanto a supersimetria como Technicolor eventualmente requerem um certo ajuste arbitrário de parâmetros e simetrias discretas para poder evadir o problema da hierarquia, o que na prática não o resolve completamente, apenas o transfere para um outro lugar: a tentativa de justificar as escolhas de parâmetros nestas teorias.
Durante vários anos não surgiu nenhuma alternativa viável para supersimetria ou Technicolor, até que em 1998 Nima Arkani-Hamed, Savas Dimopoulos e Gia Dvali mostraram que se existem mais dimensões espaciais no universo então há um cenário possível que resolve o problema [4].
Se há dimensões extras no universo, então a potência irradiada por grávitons que podemos observar nas 3D é menor que a potência total irradiada, devido ao fato que parte dos grávitons se propagam nas dimensões extras. Sendo assim, é possível ajustar a constante da gravitação de Newton para trazer a escala da gravitação quântica para aproximadamente 1 TeV. Isso resolve o problema pois nesse caso a contribuição dos pares de partículas virtuais seria da ordem ~ 1 TeV, que é apenas uma ordem de grandeza diferente da massa do Higgs, ao invés de 17 ordens de grandeza.
O trabalho de Nima e Cia. abriu uma nova arena para a construção de alternativas ao Modelo Padrão. Atualmente, o mais estudado é o modelo de Randall-Sundrum[5].
Nos modelos com dimensões extras há novas partículas, pois para cada partícula há um campo associado (por exemplo, para o fóton há o campo eletromagnético) que agora pode "vibrar" em mais dimensões. As vibrações nas dimensões extras são percebidas como partículas elementares, chamadas de parceiros Kaluza-Klein. Então, por exemplo, para o campo eletromagnético há o fóton e toda uma torre de excitações Kaluza-Klein de massa ~ 1 TeV. Todas essas partículas poderiam ser, em princípio, observadas no LHC (indireta ou diretamente).
É extremamente excitante imaginar que daqui a poucos anos poderemos obter de um experimento como o LHC informação sobre algo tão fundamental como o número de dimensões que existe no universo, em especial se o resultado for que há mais do que apenas 4 [6].

Em 2001, inspirados pela descoberta dos modelos de dimensões extras, Nima, Andrew Cohen e Howard Georgi encontraram outra alternativa [7]. Eles mostraram que é possível construir um modelo onde o bóson de Higgs tem uma simetria extra que "protege" a massa de contribuições de partículas virtuais. O segredo é o que se chama simetria de custódia, que impõe que se a massa do Higgs fosse zero então nenhuma partícula virtual poderia contribuir para a massa do Higgs. O resultado é que todas as contribuições de partículas virtuais passam a ser elas próprias proporcionais ao valor da massa do Higgs. Assim, se a massa do Higgs for da ordem de 100 GeV, todas as contribuições de partículas virtuais são também da ordem de 100 GeV, e não ocorre nenhuma catástrofe. Vários modelos foram construídos baseados nesta idéia, e eles vão sobre o nome genérico de Little Higgs.

Será que o LHC vai revelar que há supersimetria? Technicolor? Dimensões extras? Little Higgses? Ou será que o LHC vai apenas encontrar o bóson de Higgs do Modelo Padrão e nada mais? Lembremos que o que está em jogo aqui é a compreensão de o que na Natureza permite que exista a unificação eletrofraca, i.e. como é possível que exista uma única simetria para a força fraca e o eletromagnetismo quando o fóton não possui massa mas os bósons W e Z são pesados.

E ainda há muito mais coisas curiosas para falar... Vão ficar para um próximo post! cool

Nota: terei o maior prazer em responder perguntas sobre o texto, que podem ser deixadas como comentários.


Referências
  1. M. Wise, N. Isgur, Phys.Lett.B 232:113 (1989) [SPIRES]; M.B. Voloshin, M.A. Shifman, Yad. Fiz. 45 (1987), p. 463 [SPIRES].
  2. L. Susskind, Phys. Rev. D 20, 2619 - 2625 (1979) [SPIRES]. A proposta de Technicolor já havia sido esboçada, por razões diferentes, em 1976 por Steven Weinberg [SPIRES].
  3. Para o argumento do problema da hierarquia tanto importa se a unificação eletrofraca é válida até a escala da gravitação quântica ou até uma escala de grande unificação com a força forte (que é ~ 1015 GeV).
  4. N. Arkani-Hamed, S. Dimopoulos, G. Dvali, Phys.Lett.B 429, 263-272 (1998) [SPIRES].
  5. L. Randall, R. Sundrum, Phys.Rev.Lett. 83, 3370-3373 (1999) [SPIRES].
  6. Para mais sobre esse assunto, você pode ler este artigo de divulgação.
  7. Phys.Lett.B 513, 232-240 (2001) [SPIRES]. Para um artigo de divulgação sobre Little Higgs, veja aqui.

Jayme Tiomno e o mecanismo das interações fracas

Jayme Tiomno nasceu no dia 16 de abril de 1920 no Rio de Janeiro mas fez quase todo seu curso secundário em Muzambinho, Minas Gerais, vindo a completá-lo no Rio de Janeiro. Ingressou na Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi) da Universidade do Brasil, atual UFRJ, onde se formou Bacharel em Física em 1941. Nesta época conheceu José Leite Lopes (FNFi) e Cesar Lattes (USP). Formado, foi assistente de Joaquim Costa Ribeiro na FNFi (1942) e depois de Mário Schenberg na USP em 1947. Naquele ano, assistiu um seminário de Lattes a respeito da nova descoberta da existência do múon e do píon, de onde surgiu seu interesse em especial pelo múon, que já naquele momento lhe pareceu também interagir pelo mecanismo de Fermi, outrora proposto para explicar o decaimento betado nêutron.
Tiomno recebeu uma bolsa do governo norte-americano para obter seu Ph.D., tendo ele seguido para a Universidade de Princeton em 1948. Lá, trabalhou com John A. Wheeler (ex-orientador de R. P. Feynman) que também estava interessado na natureza da interação dos léptons. Tiomno concebeu um esquema geral para a interação fraca (historicamente conhecido por universalidade das interações fracas) no qual existiriam três pares de partículas, [(p,n), (e,νe), (μ,νμ)], que interagiriam entre si segundo o esquema original de Fermi[1], idéia simultaneamente proposta por B. M. Pontecorvo, O. B. Klein, G. Puppi, T. D. Lee, C. N. Yang e M. N. Rosenbluth. No artigo de Wheeler e Tiomno, havia um diagrama representando o esquema geral, hoje conhecido por triângulo de Tiomno. Ele ainda trabalharia no mesmo tema logo depois com C. N. Yang, quando formalizaram a proposta pela primeira vez e cunharam o termo interação universal tipo Fermi[2].
Em 1950, Tiomno concluiu sua tese de doutoramento na supervisão de Eugene Wigner a respeito do campo dos neutrinos e o decaimento beta duplo. Ele voltou para USP ainda em 50 e realizou um importante trabalho com Walter Schützer no qual eles introduziram pela primeira vez a noção de causalidade no formalismo matemático da teoria da matriz S, o que constituiu a primeira aplicação da teoria das relações de dispersão às reações nucleares[3]. Em 1952, ele foi convidado a integrar o grupo de física teórica coordenada por J. Leite Lopes no CBPF. Os anos 50 no CBPF são lembrados pelo próprio Tiomno como os anos mais frutíferos de sua carreira. Ele concentrou-se primariamente em continuar a elucidação das interações fracas. Aplicando vários critérios de simetria ao modelo da interação universal tipo Fermi, chegou a conclusão que seus trabalhos anteriores levavam a duas possibilidades: a interação fraca se daria pela conservação de uma corrente de natureza S+P+T (escalar mais pseudoescalar mais tensor) ou V-A (vetor menos axial)[4]. Para tal, ele introduziu a noção da chamada transformação γ5 (gama 5). Ele considerou que a interação fraca deveria ser do tipo S+P+T. Dois anos depois, nos Estados Unidos, R. E. Marshak e E. C. G. Shudarshan e independentemente Feynman e M. Gell-Mann propõe, com base nas evidências experimentais daquele ano (1957), que a interação é na verdade na forma V-A. Esta segunda forma que descreve corretamente a interação fraca dos léptons e hádrons.
Ainda em 1957, Tiomno desenvolveu estudos a respeito da natureza da interação nuclear forte que logo em seguida serviram de base para os desenvolvimentos de Y. Ne’eman que culminaram na elucidação da estrutura destas interações, independentemente de Gell-Mann.
Em 1960, Tiomno propôs a existência de um novo méson, o , similar ao já conhecido méson K, mas de paridade oposta, para dar conta de assimetrias observadas em colisões de hádrons. A existência da partícula foi mais tarde confirmada no SLAC, em Stanford (ressonância K-π, ou K*).
Em 1987, o Comitê Nobel recebeu a indicação de agraciar naquele ano Shudarshan, Marshak, Mdme. C. Wu e Tiomno pelas descobertas a respeito da interação fraca. No entanto, decidiu-se por J. G. Bednorz e K. A. Muller pela descoberta das cerâmicas supercondutoras.
As intervenções do regime militar no Brasil encontra-nos aqui novamente. Em 1964, o novo diretor do CBPF, almirante Otacílio Cunha, torna o ambiente impossível para a pesquisa, e Tiomno busca se afastar. No ano seguinte, ele consegue ir para a Universidade de Brasília (UnB) juntar-se com Roberto Salmeron na criação de um centro de física naquela universidade. Porém, a arbitrariedade incomensurável do regime leva a descontinuação da UnB em outubro daquele mesmo ano[5]! Tiomno volta então para o Rio. Wheeler, preocupado com a situação, convidou-o várias vezes para tornar-se pesquisador visitante de Princeton, mas Tiomno declinava. Em 67, consegue afastar-se do CBPF indo para o Instituto de Física da USP, onde fundou o grupo de pesquisa hoje integrado no Departamento de Física Matemática (fundado por H. M. Nussenzveig). Mas isso só durou um ano: AI-5 veio no final de 68. Tiomno estava, como tantos outros acadêmicos, proibido de trabalhar. Wheeler, nos Estados Unidos, tomou conhecimento e ajudou a organizar uma seqüência de abaixo-assinados enviados ao presidente Costa e Silva, um dos quais com a assinatura de mais de 600 físicos estrangeiros, e também manifestações individuais de repúdio ao presidente enviadas por C. N. Yang e Licoln Gordon (este último na época era reitor da Johns Hopkins).
Tiomno ainda recusou vários convites para ir lecionar nos Estados Unidos, tentando diversas manobras para resolver o problema no país. Depois que seus ex-alunos não conseguiram contrata-lo para a PUC-RJ em virtude da intervenção militar, Tiomno cedeu a um convite feito por Freeman Dyson em setembro de 1970 para ir a Princeton, onde permaneceu até 1972. Finalmente, em 1973, por interferência do papa Paulo VI, o grupo da PUC-RJ conseguiu contratar Tiomno e este voltou ao país. Assim, continuou seus trabalhos em colaboração com seus ex-alunos, entre os quais Jorge André Swieca, onde formou um núcleo de excelência em física teórica de onde destacou-se mais tarde o grande divulgador de ciência Marcelo Gleiser.
Com a anistia em 1980, Tiomno pôde voltar ao CBPF onde permaneceu até se aposentar, trabalhando primordialmente com Relatividade Geral. Ele chegou, nos últimos anos, a desenvolver um trabalho no qual revisava criticamente a relatividade especial e apontava que os experimentos já realizados, embora corroborassem a teoria, não eram capazes de banir propostas alternativas. Este trabalho foi inicialmente recusado para publicação, mas Tiomno pediu uma revisão mais cética. O trabalho foi por fim publicado em 1985[6].
Entre os prêmios que recebeu, destacam-se a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico (1994) e Prêmio de Física da Academia de Ciências do Terceiro Mundo (1995).

Notas
  1. Tiomno, J., Wheeler, J. A. Rev. Mod. Phys. 21, 153 (1949); Rev. Mod. Phys. 21, 144 (1949)
  2. Tiomno, J. Yang, C. N. Phys. Rev. 79, 495 (1950).
  3. Schützer, W. Tiomno, J. Phys. Rev. 83, 249 (1951).
  4. Tiomno, J. Nuovo Cimento 1, 226 (1955).
  5. O relato “de dentro” da intervenção militar na UnB encontra-se em R. Salmeron, A Universidade interrompida, Ed. UnB (1999). Este não é o único episódio no qual um centro de pesquisa foi destruído pelo regime. O laboratório do célebre Walter Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro foi outro, tendo ele perdido o acúmulo de equipamentos desde os herdados de seu pai. Anos de pesquisa destruídos, um acontecimento que derrubou emocionalmente Walter pelo resto de sua vida.
  6. Tiomno, J., Rodrigues, W. A. Found. Phys. 15, 945 (1985).
  7. Para um artigo mais completo sobre a vida de Tiomno: Bassalo, J. M. F., Freire, O., Jr. Rev. Bras. Ens. Fís. 25, 426 (2003), disponível online aqui.

Dois artigos para ler no fim de semana

Aqui vão duas leituras interessantes para o fim de semana:

  1. Steven Pinker, The Moral Instict, NY Times, 13 Jan 2008; psicólogo de Harvard fala sobre os instintos humanos que estabelecem a moral (em inglês).

  2. Hélio Schwartsman, Ciência sob ataque, Folha de S. Paulo, 31 Jan 2008. Ministra criacionista...

José Leite Lopes (1918-2006) e a unificação das forças fundamentais

José Leite Lopes nasceu em Recife a 28 de outubro de 1918. Estudou no Colégio Marista e foi encantado pela ciência, especialmente a química. Assim, ingressou em 1936 na Escola de Engenharia de Pernambuco onde formou-se três anos depois em Química Industrial. Lá, conheceu Luiz Freire, um dos pioneiros em Física no Brasil, que foi sua maior influência para mudar para a pesquisa em Física. Em 1937, Leite Lopes foi ao III Congresso Sul Americano de Química, onde conheceu Mário Schenberg, que apresentou-o ao então Departamento de Física da USP. Voltando para Recife, Leite Lopes estava decidido: iria seguir carreira como físico. Em 1939, formado, Leite Lopes conseguiu uma bolsa de estudos das industrias Manuel de Britto para continuar seus estudos no sul do país. De 1940-42 formou-se bacharel em Física pela Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi) no Rio de Janeiro (atual UFRJ). Naquele ano, Leite Lopes recebeu uma bolsa da Fundação Zerrener[1] para trabalhar na USP, sob orientação de Schenberg, e nesta ocasião conheceu Cesar Lattes. Ficou na USP até 1943 e no ano seguinte prosseguiu para obtenção de seu Ph.D. na Universidade de Princeton. Já no primeiro semestre em Princeton, Leite Lopes publicou um trabalho com Josef Maria Jauch onde desenvolviam a interação nuclear forte como troca de pares de mésons escalares entre os nucleons. Mas sua tese de Ph.D. não seria orientada por Jauch, e sim, por sugestão deste, por Wolgang Pauli, célebre pioneiro da mecânica quântica e teoria quântica de campos. Em Princeton, Leite Lopes assistiu aulas e seminários de Einstein, Weyl, von Neumann e naturalmente, Pauli. Parte da série de artigos de Pauli e Leite Lopes estão hoje disponíveis na coletânea da produção científica de Pauli.
Defendida sua tese, Leite Lopes voltou ao Rio de Janeiro no início de 1946 então com seus 27 anos, onde assumiu a cátedra de Física Teórica Superior da FNFi. Seu grupo de trabalho pareceu restringir-se principalmente a Jayme Tiomno (FNFi) e Schenberg (USP). Tentou sistematicamente aumentar os recursos para pesquisa em Física no Rio de Janeiro, levando a pauta na congregação da FNFi, publicando artigos em jornais, tentando ao menos contratar mais algum pesquisador assistente, mas sem nenhum sucesso. Os resultados de seu amigo Lattes em 48-49 animou a sociedade brasileira e quando Lattes voltou para o Brasil foi possível finalmente ampliar os horizontes, não na universidade, mas com a criação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) em 1949, liderada por Lattes e Leite Lopes, e em seqüência, do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) em 1951. Atrás da consolidação do emergente CBPF, buscou-se colaboração internacional e nacional, tendo Leite Lopes trazido Richard P. Feynman em 1950 e em 1951, para pesquisa no CBPF e aulas na Universidade do Brasil. Também passaram a integrar o grupo de trabalho de Leite Lopes no CBPF: Schenberg, Guido Beck, J. J. Giambiagi e Tiomno. Lattes liderava a pesquisa experimental. No ano de criação do CNPq, com a ajuda do novo órgão do governo, realizou-se no país um encontro de física, no qual participaram além dos pesquisadores já citados do CBPF e outros daquela instituição e da USP, Eugene Wigner, Emillio Segrè e Isidor I. Rabi. Nestes anos, na FNFi e no CBPF, alguns nomes do Brasil formaram-se com a equipe do CBPF, como Mario Novello, Herch Moysés Nussenzveig, Luís Carlos Gomes, Nicim Zagury, Sérgio Jofilly e Jorge André Swieca.
Em 1955, Leite Lopes foi secretário científico da primeira conferência internacional sobre utilização pacífica da energia atômica da ONU, junto com Oppenheimer, mas no ano seguinte voltou a trabalhar em teoria quântica de campos: a convite de Feynman foi ao CalTech como research fellow, onde também estava Murray Gell-Mann.
Os trabalhos de Leite Lopes no CalTech culminaram em 1958 com o que foi talvez sua contribuição mais significativa para a Física[2]: a observação que a força nuclear fraca como descrita na teoria de Fermi poderia advir da existência de partículas massivas carregadas (mais tarde chamado bóson W) e também de uma partícula neutra (o bóson Z). Até antes do trabalho de Leite Lopes, no contexto da interação nuclear fraca, apenas os bósons W já haviam sido considerados.
Este trabalho foi uma observação que antecedeu as idéias que culminariam na versão moderna da teoria eletrofraca de Steven Weinberg e Abdus Salam[3], o que deu aos dois o Prêmio Nobel. Outro físico brasileiro que trabalhou na teoria eletrofraca e obteve grande sucesso foi Tiomno, que falaremos mais em outro ensaio, chegando inclusive a ser indicado para receber o Prêmio Nobel por suas contribuições.
Novamente em 1961 Leite Lopes surgiu no quadro político, desta vez para lançar o projeto de criação do Ministério da Ciência e Tecnologia, junto com H. Moussaché, W. Oswaldo Cruz, H. Lent e A. Moses (então presidente da Acad. Bras. de Ciências). O projeto saiu do papel, no entanto, anos mais tarde.
Leite Lopes e o CBPF foram atingidos pelo regime militar no Brasil. Com o estabelecimento do governo autoritário, já em 1964 Leite Lopes fora chamado a depor em dois inquéritos e viu Schenberg ser preso e ter seus direitos políticos e ligações acadêmicas suspensas, em virtude de ser membro do Partido Comunista. O AI-5 aposentou Leite Lopes compulsoriamente e o impedia de continuar suas atividades ligado a FNFi, então ele e sua família refugiaram-se no exterior. Sua primeira parada foi em Carnegie-Mellon em 1969, e um mês depois de estabelecido nesta universidade, recebeu do almirante Otacílio Cunha, novo diretor do CBPF, a carta anunciando que Leite Lopes estava demitido!
No exterior, Leite Lopes permaneceu em Carnegie-Mellon por um ano. Em seguida foi para a Universidade Luis Pasteur em Estrasburgo na França e foi extraordinariamente nomeado professor titular. Com a redemocratização do Brasil em 1986, foi convidado pelo Ministro da Ciência e Tecnologia, Renato Archer, a voltar ao país, o que aceitou, tornando-se diretor do CBPF — e eu diria aqui: honoris causa Otacílio! —, cargo que manteve até 1989.
Leite Lopes passou seus últimos anos no Rio de Janeiro e além da física, apreciava a arte plástica, sendo ele próprio um pintor. Alguns de seus quadros podem ser vistos no seu livro Ciência e Liberdade, da Ed. UFRJ/CBPF e na capa de seu Uma história da Física no Brasil, Ed. Liv. da Física, que são a base deste ensaio biográfico e muito dos demais desta série.

Leite Lopes faleceu em 2006, aos 87 anos, no Rio de Janeiro, de uma parada cardíaca.


Notas

  1. Esta fundação era do empresário co-fundador da cervejaria Antárctica, Heitor Zerrener.
  2. J. Leite Lopes. Nuclear Phys. 8, 234 (1958). Resumo do artigo aqui.
  3. Um outro relato da contribuição de Leite Lopes é dado por Steven Weinberg em sua Nobel Lecture.