Mario Schenberg (1914-1990): Física, Política e Arte

Mário Schenberg foi um grande físico teórico brasileiro com grande interesse na política e nas artes plásticas. Ele nasceu em Recife em 2 de julho de 1914, mas sua família visitava constantemente o Rio de Janeiro, onde passou grande parte de sua infância. Aos treze anos teve seu primeiro contato com a geometria e a física que o encantaram. Também nesse mesmo ano conheceu as idéias marxistas, lendo o periódico Cultura, que o levaram imediatamente a sua primeira participação política apoiando a Coluna Prestes no último ano do movimento.
Ingressou em 1931 na Escola de Engenharia de Pernambuco em Recife e lá teve contato com sua primeira forte influência: Luiz Freire — instigador de tantos outros espíritos científicos, como o de José Leite Lopes. No terceiro ano, transferiu-se para a Escola Politécnica da USP, onde se formou engenheiro eletricista em 1935. Com a criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP em 34, ele ingressa na turma de matemática, onde teve aulas com Gleb Wataghin e o matemático italiano Luigi Fantappié. Em 1936, obtém seu grau em matemática na primeira turma da recém criada faculdade. No último ano de engenharia (1935), já havia preparado um trabalho na incipiente eletrodinâmica quântica[1]. Formado, foi contratado como assistente no laboratório de Wataghin. No ano seguinte, desenvolveu a representação do funcional delta de Dirac através da integral de Stieljes, trabalho que foi indicado à publicação por Tullio Levi-Civita nos anais da Academia dei Lincei [2]. Pouco depois, em 1938, subsidiado pelo governo do estado de S. Paulo, foi para a Itália trabalhar com Enrico Fermi a respeito da eletrodinâmica quântica.
Enquanto trabalhava com Fermi, desenvolveu a hipótese da origem dos raios cósmicos a partir de mésons, e não fótons e elétrons, como se supunha na época. Como Fermi não acreditou no trabalho, Schenberg só veio a publicá-lo em 49 no Brasil, nos Anais da Acad. Bras. de Ciências. Este trabalho está citado no livro de Heisenberg sobre raios cósmicos.
A ascensão do fascismo levou Fermi aos Estados Unidos e Schenberg mudou-se para Zurique, onde trabalhou com Wolfgang Pauli. Logo antes da guerra estourar em 39, Schenberg foi para Bélgica a fim de voltar ao Brasil. Antes, passou por Paris, onde ficou alguns meses como visitante no Collège de France, dando seminários, no ambiente junto com F. Joliot-Curie e P. Langevin. Lá ele conheceu o artista Di Cavalcanti.
De volta ao Brasil no final de 38, Schenberg recebeu bolsa da Fundação Guggenheim para ir trabalhar nos Estados Unidos, onde permaneceu durante a guerra. Foi a Universidade de Washington, onde estava George Gamow que Schenberg já havia conhecido anteriormente no Brasil. No final da década de 30, Gamow investigava o processo de colapso das estrelas que leva às supernovas. Os cálculos já realizados por Gamow não incluíam o neutrino, que era idéia recente. Notando isto, Schenberg aperfeiçoou o modelo, e o neutrino acabou por desempenhar o papel crucial no mecanismo das supernovas[3], sendo responsável em parte pela dissipação de energia nas estrelas. O processo de "roubo de energia" pelos neutrinos foi chamado de processo urca. A razão do nome vem de encontros anteriores de Gamow e Schenberg, quando os dois foram certa vez ao cassino da praia da Urca (próximo de onde hoje é o CBPF), onde teriam perdido dinheiro em apostas na roleta. Gamow, de quem se tem tantas histórias de irreverência, salientou que os neutrinos roubavam a energia do interior das estrelas com tanta rapidez quanto o dinheiro sumia na roleta do cassino da Urca. Na comunidade internacional, o mecanismo das supernovas é mais conhecido por ser acrônimo de Ultra Rapid CAtastrophe. Curiosamente, a palavra 'urca' transliterada para cirílico é expressão coloquial para ladrão na região sul da Rússia, inclusive em Odessa, onde Gamow nasceu[4].
Schenberg em seguida foi para o Instituto de Estudos Avançados de Princeton onde realizou novamente trabalhos com Pauli a respeito de relatividade geral (dos quais destacou-se a primeira observação do momento angular do campo gravitacional) e um sobre interações fracas que não conservam paridade — precedendo o trabalho de C. N. Yang e T. D. Lee. No mesmo ano, ainda trabalhou com S. Chandrasekhar no observatório de Yerkes a respeito da evolução do Sol[5].
Schenberg voltou em 1942 para a USP. Coordenou um trabalho a respeito da teoria do elétron pontual, no qual trabalharam Leite Lopes, Walter Schützer e César Lattes[6]. A partir de 1944, assumiu a cátedra de mecânica racional e celeste, e passou a contribuir crucialmente para formação de novos pesquisadores no Instituto de Física da USP (IF USP).
A partir de 1948, Schenberg passou seis anos na Europa, trabalhando na Universidade Livre de Bruxelas. Quanto voltou ao Brasil, assumiu a diretoria do IF USP que manteve até 1961. Desta época criou o grupo de estado sólido (labs. de baixas temperaturas e ressonância magnética) com recursos federais e o apoio de Ulysses Guimarães, antevendo a importância destas pesquisas para o avanço tecnológico. Na época, seus colegas, incluindo Oscar Sala, desfecharam críticas a essa iniciativa, pois consideravam a física nuclear o paradigma de aplicação. Schenberg ainda propôs a instalação do primeiro computador na USP, o que foi realizado na Escola Politécnica sob sua supervisão.
Na década de 60, Schenberg foi convidado a integrar o grupo de física teórica do CBPF onde colaborou com a formação de jovens pesquisadores como Jorge André Swieca.
Membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB), em 1946 foi eleito deputado estadual em S. Paulo. Como tal participou da Assembléia Nacional Constituinte de 1946 e propôs a lei que instituiu o curso noturno na universidade. Em maio de 1947, o PCB foi cassado: Schenberg e seus companheiros estavam na ilegalidade. Ficou dois meses preso. Em 1962 foi novamente eleito deputado estadual pelo PTB com a maior votação do partido no estado, porém não pôde exercer a função por ser ex-membro do PCB. Com o regime militar, foi preso, torturado e ficou foragido. Lattes coletou assinaturas da comunidade científica internacional solicitando o relaxamento de sua prisão, para que pudesse ir ao Japão a um congresso o qual estava convidado. O governo cedeu, Schenberg viajou, mas não pediu exílio, fazendo questão de voltar. Com o AI-5 foi aposentado compulsoriamente e proibido de ir a USP e ao CBPF. Da opressão de sua atividade política guardou forte mágoa, “há certas coisas que a gente não deve esquecer, porque se a gente esquece, perdoa; e certas coisas não devem ser perdoadas” disse mais tarde relembrando os anos de ditadura. Em 1979, com a anistia, foi reintegrado ao corpo docente da USP. Enquanto esteve afastado, dedicou-se mais a crítica da arte plástica, tendo publicado livros e resenhas que se tornaram referências.
No final de sua vida, tornou-se pesquisador emérito do CPBF (1988) e da USP (1987), recebeu várias honras como Cidadão Paulistano (1986). Gradativamente, Schenberg apresentou os sintomas de Alzheimer, mal que o levou a morte em 10 de novembro de 1990. Na ECA USP, foi homenageado com a criação do Centro Mário Schenberg de Documentação e Pesquisa em Artes em reconhecimento de suas publicações como crítico.


Notas
  1. Schönberg, M. Nuovo Cimento (1936) [ref em falta]
  2. M. Schönberg. Rendiconti della Acad. Naz. dei Lincei, 20, 81 (1937).
  3. Gamow, G., Schönberg, M. Phys. Rev. 58, 147 (1940); Phys. Rev. 59, 539 (1941).
  4. A origem do nome em referência ao cassino é verídica, contada pelo próprio Schenberg (Cientistas Brasileiros, SBPC); Nadyozhin, D. K., Space Science Reviews, 74, 3-4 (1995), Springer.
  5. Chandrasekhar, S., Schönberg, M. Astrophys. J. 96, 161 (1942).
  6. Estes artigos serviram logo em seguida de base para a teoria de Feynman-Wheeler (cf. Wheeler, J. A., Feynman, R. P. Rev. Mod. Phys. 21 (1949)).
  7. Um fascinante relato sobre as interferências do regime militar é Bassalo, J. M. F., Freire, O., Jr. Rev.Bras. Ens. Fís. 25, 426 (2003).

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